Está semana foi daquelas. SOS. Por exemplo, precisei acompanhar minha mãe em muitas atividades. Estou morando com ela num condomínio na divisa da cidade de Lagoa Santa e Joboticatubas, aqui em Minas. Os médicos seriam em Belo Horizonte e Lagoa Santa. Isso significa que eu iria dirigir bastante, trânsito agitado, longas distâncias, com agenda cheia. Já evolui muito mas, ainda assim, respirei fundo e orei para dar tudo certo. Pensei: Sai preconceito; eu vou passar com meu jeito de ser. Seria uma longa semana com longos dias…
Porém, ah, porém…
Mesmo eu sendo de Beagá, eu só conheço a cidade no bairro onde moro e arredores que eu frequento. O médico de minha mãe é num dos locais que pouco conheço. Mas saindo aqui do Condomínio eu já vou com tranquilidade. Na primeira vez, fomos com o GPS ligado. Na segunda também, mas aumentei o desafio. Olhei bem a sinalização. Se os prefeitos se dessem conta da maravilha de uma cidade bem sinalizada, o mundo seria outro. Agora, na terceira vez, pude ir tranquila.
Porém… ai de mim com esses poréns, na volta não conseguia entender a lógica do retorno de jeito algum. Minha mãe, então, ligou o GPS e se antecipou me orientando. Essas mães são mesmo um presente dos céus. Pude retornar para Lagoa Santa, saboreando a companhia e a paisagem. Porém…
Eu vou passar com meu jeito de ser.
Cérebro neurodivergente é com esse que eu vou. É com ele que enfrento as atividades da vida diária. Aliás, esse é meu jeito de ser. Portanto, ao chegar em Lagoa Santa, iríamos fazer umas compras, fazer um lanche, ir ao salão, ao médico e à farmácia. Qual o problema disso? Nenhum se eu penso na estratégia para executar cada uma das ações. Além disso, o velho desejo: Sai preconceito eu vou passar com meu jeito de ser.
Entro na cidade e logo ali está a loja escolhida. Eram duas possibilidades: escolhemos a mais acessível: loja grande, arejada, muito bem decorada, com espaço confortável de circulação. Além disso tudo, com rampa de acesso e vendedoras preparadas para ‘adivinhar’ o que deveriam fazer para retirar as barreiras para aquela senhorinha sorridente e simpática.
Dessa maneira, sempre havia uma cadeira disponível, perto de minha mãe, quando o ‘Parkinson’ travasse seus movimentos. Ao caminhar pelos corredores, ela era acompanhada por uma vendedora jovem, atenta e carinhosa: “Quer pegar aquele produto? Um minuto!” “A senhora já está aqui há bastante tempo. Posso providenciar um copo de água?” “Quando cansar, pode segurar em meu braço.”
Ao sairmos, já com um outro vendedor para nos acompanhar até ao carro, a dona da loja nos confidenciou que a vendedora atenciosa, estava há um mês no trabalho. Vivas à ela! Caminhamos até nosso carro, descendo pela rampa de acesso colocada pela loja em lugares chave.
Sai preconceito, eu vou passar com meu jeito de ser. Não é burrice é #diferença
Optamos por um lanche num local silencioso, aconchegante e muito limpo. Em seguida fomos ao salão de beleza. A dona sempre reserva um horário com menos movimento para nós. Nada de estresse numa atividade que requer nossa atenção. Em seguida, nos dirigimos ao médico. Deveria retornar ao Centro da cidade, passando por ruas que ainda não havia transitado.
Minha mãe passou a me orientar. A danada tem 80 anos. Ela me passou a visão geral do caminho para depois indicá-lo, parte a parte. Isso me deixa segura. Porém… ela comentou algo do tipo: “Sueli, estamos naquela região que a gente passa quando…” Olhei à volta. Não reconheci NADA. Senti o esforço de meu cérebro para acompanhar as palavras de minha mãe. Até que completei o que ela dizia.
A resposta de minha mãe foi um sorriso um tanto sem graça. Adivinhei que tinha errado. Ela confessou que não entende o meu raciocínio. Como estou me esforçando para melhorar o padrão de realização de minhas tarefas, consegui explicar:
Sai preconceito eu vou passar com meu jeito de ser.
“Mãe, tenho a sensação que meu cérebro constrói na hora, as imagens de sua instrução. Olho ao redor e tento reconhecer as imagens de suas orientações no cenário em que estou. Quando não é um lugar em que passei EXATAMENTE, essas duas imagens não se fundem e eu não consigo reconhecer o que está sendo dito.”
“Já fiquei frustrada ‘n vezes’, ao constatar que o local era o mesmo. A diferença era que estávamos chegando do lado A e não do lado B, meu velho e bom conhecido. Outra coisa, quando penso reconhecer a imagem que estou vendo no cenário, com a que está sendo formada em minha cabeça, conforme suas orientações, meu cérebro se antecipa.”
“É isso mesmo, já percebi. Ele se antecipa e cola ali, as imagem completa do local que eu pensei reconhecer. É nessa hora que me desorganizo por completo. Quando a senhora me faz ver que eu me enganei. Então, me sinto perdida e todas as imagens somem de minha cabeça. Se a senhora insiste para que eu refaça a construção das imagens, com novas instruções, eu passo a sentir enjoo.”
Quando o cérebro buga…
“Isso significa que, nessa hora, meu cérebro bugou. Aliás, preciso somente de orientações sucintas, assertivas e com o mínimo de estímulo visual”. Chegamos ao médico. Olhei para minha mãe e vi aquele olhar que me revitaliza. Ou seja, é aquele misto de compreensão, com acolhimento, com ternura. E lá no fundinho, há também uma espécie de aceitação. Quase a ouço dizer: “Entendo, ‘minha menina’, por isso me esforço para não atribular essa sua forma peculiar de viver tarefas cotidianas.”
Caminhamos em silêncio até o prédio. A semana está chegando ao fim e eu já sei, vamos simplesmente estar uma ao lado da outra. Sairemos do médico e voltaremos ao carro. Sem dizer mais nada, vou passar na farmácia, comprar os remédios receitados. E então, ao chegar em casa, vamos cada uma de nós, nos dirigirmos aos nossos quartos. Assim, nós duas, silenciosa e amorosamente, vamos desestressar de uma semana corriqueira mas com demandas demais para duas pessoas que conhecem bem as características da pessoa autista.
Texto de Selma Sueli Silva, a filha de Irene
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