Como é ser autista e boderline? Bem, a primeira vez que suspeitaram que eu poderia ser autista e borderline foi quando eu estava saindo da adolescência. Afinal, o diagnóstico de autismo veio aos onze anos. Mas o profissional disse que era necessário avaliar a possibilidade de border também. Essa análise vinha de alguns padrões de comportamento e de algumas observações do meu exame de sangue. Então, quando já adulta a minha mãe pediu um laudo para a faculdade que contemplasse todos os diagnósticos, o psiquiatra disse: “se eu colocar tudo vai ficar na ficha dela e queimá-la“.
O relacionamento amoroso de uma autista e boderline
Dessa forma, o diagnóstico de borderline só apareceu mesmo muitos anos depois. Nessa época, eu estava com 25 anos e não entendia porque apesar de ter um ex-namorado violento eu fazia de tudo para manter o vínculo com ele. Minha psicóloga, que tratava do autismo, disse que eu estava em busca de migalhas e que só me afastava mais dele dessa forma. Então, busquei maneiras mais refinadas de manter contato com ele. Cheguei a propor grupos e projetos que não sabia como atuar só para ter ele por perto. Quando a violência aumentou e veio a separação total, eu tinha uma playlist de músicas que me fazia lembrar dele. Esse meu ex continuou sendo o meu principal interesse por dois anos, em que eu fazia de tudo para ao menos simular que ele ainda estava ali. Portanto, mesmo com coisas externas maravilhosas acontecendo, nesse aspecto da minha vida pessoal eu me mantinha em frangalhos.
Nesse contexto, voltou novamente a suspeita do diagnóstico de boderline. E veio de um psiquiatra que não tinha muito conhecimento sobre a condição. Mesmo assim, ele percebia em mim todos os sintomas. Só que, para ele, eu era muito mais funcional do que geralmente os borders são. Apesar disso, fiquei aliviada quando comecei a estudar sobre o transtorno. Do mesmo jeito que muita gente relata se identificar quando me vê falando de autismo, eu simplesmente me vi naqueles relatos.
Como minha mãe reagiu ao diagnóstico de autista e boderline?
Então, o psiquiatra indicou uma neuropsicóloga que era especialista em boderline. Após a anamnese e algumas consultas para avaliações, veio a confirmação. Mas eram tantas frentes de trabalho e treinamento de autonomia que deixei isso meio de lado. Minha mãe, não. Ela começou a frequentar grupos de familiares de borderlines e me disse que, pela primeira vez, percebeu pais de filhos já adultos com o nível de crises de explosão de raiva que eu manifestava na intimidade. Assim, ela aprendeu algumas estratégias para lidar comigo. Nossa relação, embora sempre tenha sido amorosa e saudável, dava sinais de desgaste muito fortes. Porém, com essas habilidades aprendidas no treinamento de pais, ela começou a me tratar diferente e nosso dia a dia foi tornando-se menos penoso, ainda que repleto de desafios incessantes.
Já morando em Pelotas, no Rio Grande do Sul, comecei a frequentar um psiquiatra renomado da região. E, mais uma vez, diagnóstico de boderline. Essa nova confirmação me deixou mais segura para assumir o que eu já tinha certeza. Ou seja, que de fato sou uma mulher autista e boderline. Afinal, o diagnóstico de boderline preencheu lacunas que o autismo não conseguia explicar. Isso, principalmente no que se refere às explosões de raiva e ao medo de ser abandonada que me levava a agir de um modo que, paradoxalmente, afastava as pessoas.
O meu maior desafio hoje
Hoje o meu maior desafio é o boder. E não o autismo. Mas, infelizmente, border ainda é uma condição muito estigmatizada, de um modo terrível. Além disso, traz MUITO sofrimento para a pessoa e quem convive com ela. E, geralmente, ninguém sabe como lidar.
Então, se não fosse a minha prática budista e a da minha família, eu não sei de verdade onde estaria. Também acredito que no meu caso já ter sido diagnosticada com autismo em uma época em que o estigma era maior acabou me ajudando. Isso ocorreu porque amadureci em um contexto em que era muito raro ter acesso a bebidas ou drogas que poderiam me viciar.
Então meu primeiro beijo foi, acreditem se quiser, aos 23 anos. Vontade para ser antes não faltava. Já a primeira relação ocorreu um ano depois. Além disso, comecei a trabalhar formalmente já bem mais treinada, aos 25 anos. Mesmo assim, os primeiros meses foram avassaladores, por mais inclusiva que seja a empresa em que trabalho. E a parte dos relacionamentos amorosos, nossa… eu ainda não consigo elaborar isso bem, tamanho o desafio. Algumas outras situações também começaram a fazer sentido, como quando eu culpava familiares por medos que eram meus, as brigas homéricas que só aconteciam com as pessoas que eu mais amava e aquela sensação apavorante vazio que tornava meus dias um verdadeiro inferno. Não à toa, minha mãe dizia que eu sempre precisava de um fato novo para melhorar a minha qualidade de vida.
Diagnósticos não são rótulos
Sempre considerei diagnósticos muito mais um norte do que um rótulo. Agora, me conhecendo ainda melhor, quero trabalhar o meu comportamento explosivo e instável nas relações sociais íntimas. Quero desenvolver estratégias para viver o “aqui e agora”, pois minha mãe sempre reclamou que minha mente ou estava hiperfocada no passado ou no futuro. Dessa forma, já comecei a desenvolver estratégias para o lazer, por mais esquisita que essa frase possa parecer. Mas, como eu sempre me guiava por outra pessoa, eu agora estou descobrindo o meu próprio gosto para diversão e descanso.
Distorções na auto imagem, aliás, fazem parte do diagnóstico de boderline. Então, lembro-me de uma avaliação neuropsicológica de anos atrás em que o teste de personalidade acusou que eu me considerava menos competente que 95% das pessoas. Isso parece contraditório a alguém que escreveu vários livros e produziu tanto conteúdo aos 20 e poucos anos. Enfim, quero resgatar minha autoestima. Mas, sem resvalar na arrogância que por vezes também transparece. Isso porque o equilíbrio sempre foi um desafio para mim. Não à toa me tornei budista para encontrar o caminho do meio. As pessoas sempre diziam que eu era 8 ou 80 e, quando mais próximas, que eu parecia oscilar entre uma personalidade meiga e adorável e outra explosiva e beligerante.
Autora
Sophia Mendonça é uma jornalista, escritora e pesquisadora brasileira. É mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+
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