A ilustração é um texto? - O Mundo Autista
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A ilustração é um texto?

De Brincadeira fala sobre o poder da ilustração na literatura infantil

Victor Mendonça e Raquel Romano

Você conhece a literatura imagética? Victor Mendonça e Raquel Romano falam sobre esse modo de contar história. Saiba o porquê ele é tão interessante.

Victor Mendonça: Eu estudo no mestrado as Textualidades Midiáticas. Essa questão dialoga com o tema que vamos abordar hoje, que é a literatura imagética. Por que textualidades? O texto, na verdade, é muito mais que aquele texto verbal, escrito. E como se dá a literatura imagética, Raquel? Porque muita gente fala que não tem texto, mas não é bem assim.

Raquel Romano: Os autores não gostam de dizer “livros sem texto”. Porque o texto, a imagem e o desenho, a pintura ou a história ali retratadas são um texto, também. Só que é um texto visual. Então, é o que chamamos de literatura imagética e não de livros sem texto. Eu sempre digo que a primeira leitura da criança é uma leitura visual e a alfabetização visual da criança se dá muito por este tipo de literatura. Essa é uma literatura que a criança lê sem saber, sem ser alfabetizada. Ela lê, interpreta, se diverte, muda a história quando quiser. Isso significa uma liberdade enorme.

Victor Mendonça: Exatamente.

Raquel Romano: Dá liberdade de percepção e de livre interpretação. Isso é muito importante na vida. Esse é um grande caminho na literatura, atrelada a arte-educação. A gente leva a criança a observar, a fazer a sua leitura pessoal. Eu nunca vou dizer para ela: “Esse livro está falando disso e daquilo.”. É a criança que vai descobrir. Por exemplo, o livro do Fernando Cardoso que se chama “Um dia e um cachorro”, ele é todo composto por imagens.

De Brincadeira Raquel Romano e Victor Mendonça

Victor Mendonça: Ele é um autor ilustrador.

Raquel Romano: Isso mesmo. Significa dizer que o texto visual é de uma mesma pessoa. É uma história que você pode até chamar de metalinguagem, e tem até muito a ver com as suas pesquisas. O cachorro faz parte do livro. Ele entra no livro e ele sai mostrando, sai caminhando, como se fosse ele observando e percebendo a trama da história. Ele caminha pelas ruas. Os humanos são o foco de percepção do cachorro, olha que coisa mais inteligente. Um dos cachorros estava preso na corrente, de repente eles se encontram na rua e a corrente se rompe, quando acontece o encontro dos dois cachorros. É muito interessante essa metalinguagem, em que o autor fica extasiado com o que vai acontecendo. Ele também interage. Por isso, essa não é uma literatura só para criança. Existe uma percepção muito profunda nessas ilustrações do livro. O livro “Eu sou isso”, da Vivina de Assis Viana, é muito legal porque a autora explica para o menino, por meio da mãe dele, o que é o corpo humano, enquanto ele toma banho. A mãe fala com ele: “lave os pés, lave as mãos, lave a cabeça, lave os ouvidos”. No final, o menino diz: “Mãe, eu sou um corpo humano?”. São descobertas pela vivência, olha que interessante, como que a literatura age.

Victor Mendonça: Pela experiência sensorial também.

Raquel Romano: Sim, é sensorial também. Agora, depende de como você vai estimular essa percepção. Você pode pegar um livro desse da mão de uma criança e falar: “Ah, não tem nada para ler”, ou dizer “Vamos lá, ler essas imagens”. Esse é o estímulo que podemos dar à criança.

Victor Mendonça: E, como estudioso das formas de comunicação e arte, eu acho isso riquíssimo.

Raquel Romano: Sim, talvez mais rico que um texto pronto.

Victor Mendonça: É como diz a frase: uma imagem vale mais que mil palavras.

Raquel Romano: Isso. As palavras são livres, estão na cabeça do leitor, que vai percebendo a história. Ele monta e remonta essa história. No livro “Um dia, com sua bolsa”, de Marta Neves, a história é muito ligada a esse ambiente cotidiano de trânsito, do risco que você corre na rua, no trânsito. Então, é toda uma história que não vou contar o que é, mas, com certeza é uma bolsa intrigante. Veja as outras figuras que aqui estão, o desenho é todo preto, mas a bolsa é vermelha, o mistério está nessa bolsa. Na medida que o leitor vai olhando, ele vai descobrir porque será um dia e uma bolsa. O que tem nessa bolsa?

Victor Mendonça: Eu me lembrei de um estudo que fiz sobre as cores com minha mãe. Nós fizemos um estudo sobre cores no cinema. Isso é semiótica pura. Como as crianças podem perceber essa semiótica, essa linguagem que não é expressa por palavras?

Raquel Romano: É onde está a arte, a beleza da arte. São as coisas que são

muito abstratas, são simbólicas. O estudioso faz essa leitura, mas eu não sei se o autor faz com essa intenção. Nós que somos apaixonados por esse universo, ficamos extasiados. Todo o livro que eu pego para ler é uma viagem.

Victor Mendonça: Não existe interpretação certa ou errada. O que existe é uma percepção. E se você consegue com a sua percepção, elaborar uma outra textualidade, você está tão certo, aliás, quanto o autor.

Raquel Romano: Outro exemplo: Pê, o Pato Diferente, de Regina Coeli Rennó. Você olha e percebe o que acontece. Um pato diferente, é um livro super atual. Não foi editado agora, mas é um livro super atual. É a história de um pato que queria ser músico. Ele percebia na marcenaria do pai dele, vários sons e ele viajava nessa percepção. Ele passou a ser discriminado, porque ele era diferente e não tinha talento dentro da cultura daquela família. Ele só pensava em música, em som, em ritmo e ficava de fora do contexto familiar. Ele não era feliz porque tinha que se encaixar.

Victor Mendonça: Isso, para o autista, é bem metafórico: a gente ter que se encaixar no mundo, mas do jeito que somos e, claro, cuidando para ser melhor a cada dia, com as nossas qualidades, jogando luz nas nossas potencialidades. A gente pode agregar muito com as diferenças. Afinal, nem as pessoas típicas são iguais.

Raquel Romano: Exatamente. Só que o autista tem um cérebro maravilhoso, interesses fantásticos e a caixinha da maioria é muito fechada. Esse que é o problema. Na história, o pai e a mãe ficaram muito preocupados e o pai marceneiro resolveu fazer um violão para o filho. Essa foi a libertação do pato. Ele passou a cantar, ganhou a estrada e foi para uma escola de música. Está vendo essa leitura? Há mil leituras aqui dentro. O pato ganha o universo com o talento dele.

Victor Mendonça: Olha como isso pode tanto simbolizar tanto o talento dele quanto a liberdade de poder sair de uma gaiola.

Raquel Romano: Isso é bem simbólico. Então, Victor, tem muitos outros, a Eva Furnari, que é uma grande escritora e desenhista de livros sem imagem, publicou “A menina e o dragão”, que pode gerar mil histórias e interpretações. O dragão vai atrás da menina, a menina se esconde dele e, no final das contas, o dragão prepara um fogo para ela se aquecer. Ele não queria fazer mal à menina, ele queria ajudar. Nessas pequenas descrições imagina o que já passa na cabeça da gente.

Victor Mendonça: O quanto a gente pode construir o próprio saber por meio disso, é muito rico. Porque não é um saber imposto, é um saber que a gente mesmo vai construindo, aos poucos.

Raquel Romano: Eu fico muito preocupada, com as escolas. Sabe, eu acho tão fácil ser alfabetizada. Eu fui alfabetizada na infância em um lugar mínimo, pequeno, que não tinha nem luz elétrica e a gente era alfabetizado em seis meses. Eu tive uma professora de primeiro ano que já fazia isso intuitivamente com a gente, através não tanto dos livros, como hoje, mas de vivências. Vivências com poesia, vivências corporais, com folclore e observando o mundo. Esse é o grande princípio para a alfabetização.

Victor Mendonça: É preciso dar à criança, a possibilidade de observar e tirar as próprias conclusões, com o que faz sentido para ela, pois ela vai se encantando e querendo mais.

Raquel Romano: Exatamente. E esse livro aqui, todo desenhado a lápis de cor. O autor é o Marcelo Moreira Xavier e o livro se chama “Purotaco Tataco”. É um livro lindo, limpo. Eu gosto da literatura imagética que é uma limpeza. É um espaço muito aberto, a obra aberta, na verdade, como dizia Umberto Eco, um espaço para a gente viajar à vontade. O Purutaco Tataco estava cantando e um belo dia ele teve um problema: levou um coice do animal, estourou todo e virou um papagaio, uma pipa voadora. Olha que coisa mais singela, mais delicada. A literatura imagética tem uma delicadeza muito grande, há uma transformação. Como a ilustração é o foco, a técnica usada pelo autor é muito importante: lápis de cor, aquarela, como ele usou as cores para dar um certo impacto. Isso tudo tem importância nessa leitura, tem um porquê. Mas será tema de uma conversa em um próximo encontro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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