Selma Sueli Silva e Mariana Rosa
“Existe um pensamento muito segregacionista, como se essas crianças fossem ficar melhor assistidas em uma escola separada, com profissionais especializados nos laudos que elas têm e não nas pessoas que elas são.”
Selma Sueli Silva: Hoje, nós vamos falar sobre “o Mundo de Alice”, ou melhor, o mundo que se abriu para a Alice, quando a mãe resolveu colocá-la na escola. Verdade, Mariana?
Mariana Rosa: Demorou um pouco. Porque, ainda no mundo de hoje, como nós falamos do capacitismo anteriormente, a presença das crianças com deficiência na escola comum ainda é algo que está sujeito a negociação, embora a gente tenha uma política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva desde 2008. A inclusão ainda não é um aspecto consolidado nas escolas. Existe um pensamento muito segregacionista, como se essas crianças fossem ficar melhor assistidas em uma escola separada, com profissionais especializados nos laudos que elas têm e não nas pessoas que elas são. Quando a Alice, de fato, foi para a escola, eu tive que vencer minha crença capacitista que era: “será que ela vai para a escola?”. Eu não conseguia imaginar a Alice na escola. Porque na minha experiência, eu nunca tinha convivido com uma criança como a Alice na escola. Até hoje, contamos nos dedos as crianças que estão na escola como ela, infelizmente, tanto para as crianças quanto para toda a escola. Quando decidimos fazer com que fosse a hora, já com três anos, foram seis negativas de matrícula. E as negativas não foram assim de forma direta do tipo a gente não aceita crianças com deficiência. As negativas vieram de maneira sutil: “Olha, não tem mais a vaga”, “acho que essa escola não tem o perfil para a sua filha”. Ou, em alguns casos mais explícitos: “Não trabalhamos com esse tipo de criança”. Isso aconteceu na escola pública e privada. A pública, principalmente, a desculpa era a de ausência de vagas e as privadas com essas outras desculpas esfarrapadas. Até que a gente chegou em uma escola que adota a pedagogia Waldorf, que acolheu a história da Alice e a própria Alice desde o primeiro momento. Aí, eu entendi que era ali que minha filha tinha que ficar e permanece, uma escola onde a gente é benquisto, em que essa presença faça sentido. E assim foi.
Selma Sueli Silva: Uma presença que enriquece, como de fato é a presença de um aluno com deficiência.
Mariana Rosa: Exato. Porque, é importante pensarmos a escola e a inclusão não somente como acolher a presença dentro da escola. Não é isso só. A inclusão é a forma como a gente cria uma existência comum, um projeto comum entre todas as crianças que lá estão. É isso que é verdadeiramente a inclusão porque só de a gente pensar sobre a admissão ou não de uma presença na escola, significa a gente supor uma assimetria de poder. Uma assimetria do tipo: aqui está o grupo pré-estabelecido, o grupo que está na escola, que decide quem são as pessoas que podem entrar e quem são as pessoas que vão ficar de fora. Isso é inconstitucional, além de ser imoral. Todas as crianças têm direito à escola. Está na Declaração de Direitos Humanos, na Lei Brasileira de Inclusão e na nossa Constituição. Então, não tem quem diga se ela pode entrar ou não. Ela deve entrar. É lei.
Essa escola tem que se equipar não só de recursos físicos, essa escola tem que se equipar por dentro. Os profissionais têm que se equipar internamente, para fazer com que a diversidade seja a norma a ser observada. Porque, na verdade, os profissionais julgam a pessoa com deficiência como “o diferente”. E esse diferente tem que ser tratado de modo separado, com o currículo adaptado só para ele. Com isso, vou fazendo uma segregação dentro da escola comum. E, na verdade, não existe o diferente, as diferenças permeiam todos nós. Deve ser pensado um plano de aula comum, que considere as características de todas as crianças, e o repertório tem que ser diversificado, o repertório de ensino e do professor. Tem que ser diversificado para dar conta das diversas formas de aprendizagem que nós temos, não só das crianças com deficiência. Todos nós aprendemos de maneiras muito diferentes. Uns são mais pela oralidade, outros são mais pela leitura, outros são mais visuais. Cada um é de um jeito e a escola precisa oferecer esse leque de possibilidades. Quando chega o aluno com deficiência e ele denuncia a falência da escola, porque a escola só sabe ensinar de um jeito, para um aluno tido como o ideal. O aluno ideal não existe. Esse ideal só presume o sujeito produtivo. Tudo se transforma em meritocracia, em formas e em avaliação, deixamos de lado a subjetividade, o aprendizado, a possibilidade de a gente ser atravessado por essas existências todas e pensar essa convivência de maneira mais ampla. De pensar de uma maneira que nos torne aptos a viver nesse mundo que é tão complexo, vulnerável, tão ambíguo e que requer da gente essa capacidade.
Eu penso que essa escola precisa muito se reinventar. Precisa reinventar os seus tempos e os seus espaços, para acolher não só as crianças com deficiência, mas para acolher todas as crianças que estão evadindo, saindo da escola, que estão ficando pelo caminho, que estão sendo medicadas, porque não se enquadram dentro daquilo que é esperado pela escola. Essa escola não está servindo mais, essa escola conteudista, que não coloca o aluno no centro, mas sim um repertório de informações e dados, essa escola precisa ser revista. Nesse sentido, eu até queria fazer a indicação do livro “A escuta das diferenças”, do Carlos Skliar. É um livro muito poético, fácil de ler e muito bonito. Ele fala sobre o valor das diferenças para o nosso convívio, para o nosso repertório de mundo. Inclusive para a gente ser feliz nesse mundo. Eu recomendo não só para o profissional que é da área de educação, mas para todo mundo que se interessa em entender um pouco mais da área da natureza humana, pensando na diversidade como nossa maior riqueza, a nossa maior potência.
Selma Sueli Silva: Nós fizemos uma série de quatro encontros com a Mariana, com vários assuntos. Mas ainda vamos falar sobre muita coisa. Você tem alguma pergunta? Algum assunto que queira que a gente converse é só me enviar pelo email contatoselmasueli@gmail.com . E siga a Mariana, também.
Mariana Rosa: No instagram @diario_da_mae_da_alice é aberto e tem várias reflexões sobre capacitismo, além da maternidade atípica, sobre a educação e outros tantos. Será um prazer manter o diálogo por lá também.
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