Racismo e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha - O Mundo Autista
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Racismo e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha

Selma Sueli Silva e Camila Marques

O dia 25 de julho nos convida a refletir sobre o racismo estrutural na sociedade, antirracismo e lugar de fala.

Selma Sueli Silva: Outro dia, a gente estava no início da pandemia e hoje a gente já está em agosto. Mas nesse final de julho, teve uma data que merece registro. Conta para a gente, Camila.

Camila Marques: No dia 25 de julho, foi o Dia Internacional da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha. Por que nós quisemos trazer essa data para “As divergentes” de hoje? Porque nosso continente é o continente mais negro fora da África, além do contexto histórico e também pelas condições da mulher negra em todo o continente. Cada realidade é uma: aqui no Brasil temos uma realidade, na América Central; composta por países do Caribe, como Barbados e Cuba, outra e, na América do Norte; composta por Canadá, Estados Unidos e parte de México, uma terceira realidade.

Um dado me chama a atenção, em particular. A ONU apresentou dados de que, dos 25 países com o maior índice de feminicídio do mundo, 15 ficam na América Latina e no Caribe. Isso diz muito de nossa realidade. Quando a gente observa os dados do Mapa da Violência, de 2016, só aqui no Brasil, o índice de feminicídio com mulheres negras aumentou em 55%. O feminicídio é o crime em que as mulheres são assassinadas exclusivamente por conta de seu gênero. Em contrapartida, o índice de feminicídio de mulheres brancas caiu em 10%. E qual a relevância desses dados? Eles refletem a condição de vida da mulher negra. Por exemplo, a Política de Saúde da População Negra*, no Brasil, tem 11 anos. A população negra é mais vulnerável a doenças como hipertensão, pressão alta e infarto**, doenças essas causadas pelas condições de vida desse grupo, pois é preciso considerar que vivemos em um país com um racismo estrutural acentuado. Você anda em um bairro de classe média e dificilmente vê negros nele.

Selma Sueli Silva: É uma realidade clara mas, muitas vezes, a gente nem pensa nisso.

Camila Marques: Por isso é tão importante que a gente pare para pensar sobre o racismo estrutural, pois ele é um círculo vicioso. Em 2017, eu trabalhava em um órgão ligado à Secretaria Estadual de Saúde. Eu estava em uma conferência voltada para a saúde da mulher quando a pesquisadora Diva Moreira disse que uma mulher negra, graças ao mito da resistência física, recebe menos anestesia do que uma mulher branca nas consultas e durante o trabalho de parto. Uma amiga minha, estudante de medicina, me disse que 90% dos casos de mortes de bebês em partos de mulheres negras, são casos que poderiam ter sido evitados. Esse tipo de pensamento, a gente reproduz no cotidiano, de que a mulher negra é mais resistente.

Selma Sueli Silva: E assim, vamos agindo por “rótulos”. Ou seja, coloca um rótulo no ser humano e etiqueta e esquece que a pessoa não é o rótulo, é gente. Cada pessoa é única, singular.

Camila Marques: Exatamente. Sabe o que eu acho interessante? Certa vez, eu estava com uma pessoa que tem esclerose. Então, ela me disse: “Camila, às vezes, o jovem entra no ônibus e está mais cansado, aí as pessoas julgam: “mas o jovem está sentado no ônibus”, mesmo sem ser o lugar preferencial. E ele não se levanta. E, às vezes, você tem o direito de estar cansado, até por motivo de saúde. Nem toda doença é aparente. E minha amiga concluiu: “Eu tenho esclerose, eu não aguento ficar de pé por muito tempo. Eu aparento ter essa doença? Não”. Por isso, é importante a gente não pensar e nem agir por rótulos.

Selma Sueli Silva: E é o meu caso também, porque a minha deficiência é invisível. Mas eu tenho um problema, até porque não descobri desde cedo que era autista, e eu sempre tive e ainda tenho, dificuldade em ficar de pé por muito tempo. E quantas vezes eu ouvi isso, que era um absurdo eu estar sentada no ônibus. Certa vez, eu fui fazer uma prova na escola municipal São Cristóvão. Eu tinha entre 10 e 11 anos, e quando eu entrei dentro do ônibus, eu falei para a minha mãe: “Eu quero sentar”. Eu estava com sobrecarga sensorial e me senti muito tonta. As pessoas acharam um absurdo. Como vai dar lugar para uma menina de 10 anos? Eu fui ficando enjoada e desmaiei. É isso, não podemos rotular as pessoas: é criança; dá conta, ou é negra; é forte, ou é branca; é frágil. Pode até ter quem se aproveite disso, mas não podemos rotular todo mundo assim.

Camila Marques: E até mesmo pela questão da desumanização. A mulher guerreira, a mulher que suporta. A gente lida com a questão da solidão. Isso é estatístico. Se você pesquisa o índice de mulheres negras solteiras*, ele é maior que o de mulheres brancas, já se compararmos o índice dos círculos de amizade, ele é menor comparado com a mulher branca.

Tem um vídeo da Ana Paula Xongani, ela fala da solidão da mulher negra, e cita a filha dela, que se chama Ayô e tem 5 anos. No prédio em que elas moram, nenhuma das crianças que estavam no pátio do prédio, quis brincar com a filha dela. A filha disse, já resignada: “É sempre assim, mamãe. Eu brinco sozinha”. O racismo e a opressão nos adoece.

Selma Sueli Silva: E agora está tendo um movimento que eu acho perfeito, baseado na frase “Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista.” (frase da filósofa e escritora Angela Davis). É preciso que a gente bata nessa tecla. Outra coisa que está vindo à tona e que eu acho interessante também, é a questão do lugar de fala. Por exemplo: eu posso falar sobre o racismo. Você pode falar do racismo porque você sente isso e esse é o seu lugar de fala. No entanto, e com todo o respeito, por mais que eu pense que eu consigo entender isso, que eu tenha empatia, a sua experiência é única. Eu posso ter estudado, ter percebido mas eu não vivo isso na pele. Isso para mim ficou muito flagrante quando, na semana passada, eu estava fazendo uma live com a professora e socióloga Andreia Santos (disponível na nossa página no Instagram, @mundo.autista), em que eu contava da minha origem humilde, da questão de ser autista e não saber, de morar na Vila dos Marmiteiros e tudo aquilo que eu sofri também dentro dessa linha do preconceito. Mas a Andreia ponderou: “Pois é Selma, mas não se esqueça que ainda assim, o seu sofrimento foi na pele de uma mulher branca, de uma criança branca”. Com essa observação, eu percebi que poderia ter sido pior e eu senti uma solidariedade tão grande em imaginar que um ser humano como eu, quando criança poderia estar sofrendo como eu e mais ainda, só por causa da pigmentação da pele. É muito doido, ainda bem que essas coisas tendem a passar com a evolução da sociedade.

Camila Marques: O vídeo da Ana Paula Xongani toca muito nessa questão também. Eu gosto de trazer essas temáticas para o programa para isso mesmo, gerar reflexão. É sempre importante pontuar, mas é preciso construir narrativas felizes, narrativas de leveza. Porque olhar para trás, pelo menos para mim, me edifica. Edifica e fortalece. A gente pode construir novos horizontes daqui em diante, ter uma boa referência.

Selma Sueli Silva: Você falou tudo e vou até aproveitar para fechar nosso pensamento, dizendo o seguinte: “Toda grande dificuldade que a gente passa, todo grande desafio, quando a gente lida com ele, encara, a gente está construindo uma vitória hiper estrondosa, maior que a dificuldade. A gente está se fortalecendo”. Eu sou muito grata à vida por todos os desafios que ela me ofereceu, porque hoje eu sou uma pessoa melhor, por causa da minha história. O lance é você pensar: é a minha vida, o que eu posso fazer? Eu tenho de ser feliz com ela. Hoje, “As divergentes” fez isso: trouxemos as nossas experiências, o nosso olhar de comunicadora para a gente repensar a construção de uma sociedade mais inclusiva, digna, justa e humanizada.

*A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, foi instituída em 2009 (portaria nº 992, de 13/05/2009), com a finalidade de promover a equidade e igualdade racial, voltada ao acesso e à qualidade nos serviços de saúde, à redução da morbimortalidade, à produção de conhecimento e ao fortalecimento da consciência sanitária e da participação da população negra nas instâncias de controle social no SUS.

A população negra é mais vulnerável a doenças como hipertensão, pressão alta e infarto**. O estudo foi realizado pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade estadual de Campinas (UNICAMP). O levantamento considerou dados do período entre 1990 e 2010. https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2017/07/13/hipertensao-e-mais-persistente-entre-negros-aponta-estudo

Nosso texto de hoje é dedicado à querida amiga Lúcia Livramento, que nos deixou no dia 02 de agosto.

Lúcia Livramento era figura conhecida das lutas antirracista e feminista em BH e Região Metropolitana. Além de ser diretora da Unegro-Minas Gerais, ela era ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde da capital mineira.

https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/08/02/interna_gerais,1172439/ex-dirigente-do-sindicato-dos-trabalhadores-em-saude-de-bh-morre.shtml

https://www.instagram.com/tv/CDSRSofpnh9/?utm_source=ig_web_copy_link

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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