A frase “Nós, os sonsos essenciais” aparece em uma crônica de Clarice Lispector, escrita a partir do cruel assassinato de um homem, “Mineirinho”. O fato ocorreu em 1962, no Rio de Janeiro, e foi amplamente noticiado à época. Essa afirmação de Clarice destaca um comportamento social: a dissimulação. A crítica não tem qualquer relação com o povo mineiro. E olha que nós de Minas Gerais somos conhecidos popularmente pela habilidade de “fingirmos de bobos”. Aliás, Clarice também escreveu sobre isso em “Das Vantagens de Ser Bobo”.
O que nos torna os sonsos essenciais
Na verdade, a declaração “Nós, os sonsos essenciais”, independe de quando o fato ocorreu. Ser um sonso essencial ultrapassa o tempo histórico e o contexto social do acontecimento. Tem uma força coletiva muito maior do que o fio narrativo da crônica. No nosso dia-a-dia optamos pela “neutralidade” em diversas situações, individuais ou em grupo. Por exemplo, para camuflar um sentimento e evitar encará-lo. Para não nos expormos em algum contexto por não nos sentirmos confortável para tal. Ou, ainda, para mudar o foco do diálogo que caminha para uma discussão nada construtiva. Enfim, nós nos anulamos por inúmeros motivos.
Ser sonso ou empático é escolha?
Porém, meu ponto é que a escolha por “fingir ser sonsa”, tem consequências para o bem e para o mal. Não tenho a pretensão de julgar e nem apontar o dedo a qualquer um. Chamou a minha atenção a postura de Clarice em escrever sobre a sonseira essencial, aquela intencional. A ausência de um posicionamento diante de um fato ou uma constatação, que a princípio, não nos diz respeito. E a tão falada empatia? Sim, se colocar no lugar do outro apenas quando nos convém.
É possível não ser sonso?
Uns dirão: “é o caminho mais fácil”. Discordo. Pois essa é uma escolha frágil e, a longo prazo, as consequências não serão tão fáceis. Quando não me sensibilizo com a dor do outro, conhecido ou não, assino o recibo da passividade. E há um custo de ser passivo também. Outros defenderão: “não vou mudar o mundo”. Concordo. Mas a mudança pelo bem comum começa com um movimento individual que reverbera no coletivo. Assim, ser gentil, razoável, cauteloso em busca de algum equilíbrio, nos encoraja a sair da superficialidade e da sonsice.
A sonsice essencial é excludente
Isso mesmo, a sonsice essencial é excludente. Eu não preciso ser jurista para discordar que “bandido bom é bandido morto”. Eu não preciso ser mulher para entender que o feminino não é apenas um gênero, mas uma dimensão. Nem tão pouco para ser contra a misoginia, o machismo, o feminicídio, e combater as opressões do patriarcado. Nesta perspectiva, a crônica “Mineirinho” escrita há 59 anos é muito atual! A enunciação “Nós, os sonsos essenciais” é atemporal.
De novo, em 2021: “Nós, os sonsos essenciais”
Ler Clarice Lispector nos convoca à reflexão. Também nos encoraja a sermos autênticos e expressarmos nossas convicções sem hesitar. Não há qualquer demérito em demonstrar sentimentos com intensidade e sinceridade. Aliás, não é sinal de fraqueza se importar com o sofrimento alheio. Além disso, não se esconder atrás da hipocrisia e reconhecer a humanidade em cada um é uma premissa do humano em nós.
Enfim, eu me recuso a me tornar uma pessoa estupidificada, impermeável, rasa. Há uma canção, que mais parece um poema, de autoria da Professora de Música Cecília Cavalieri que diz assim:
“O amor é a cura, pra qualquer criatura que se lembrar, da doçura original.”
Roberta Colen Linhares, natural de Belo Horizonte – MG, casada, mãe de Arthur e Isis, contadora de histórias pelo Instituto Aletria, e atualmente é graduanda do Curso de Letras na PUC Minas.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.