Eu sempre quis escrever sobre autismo e empregadas domésticas. Afinal, pela observação empírica das relações que se estabeleceram aqui em casa entre mim, mamãe e nossas ajudantes, esses relacionamentos sempre foram muito diferentes do que acontecia nas casas de outras famílias. E sim, isso se deve inteiramente às moças características autistas.
Por exemplo, mamãe sempre foi uma excelente líder de times. Então, enquanto esteve como assessora-chefe do Instituto Nacional do Seguro Social de Minas Gerais (INSS-MG), chegou a comandar com sucesso dezenas de profissionais que respondiam a ela direta ou indiretamente.
Porém, na intimidade do lar, ela sempre teve desafios profundos em se comunicar com nossos funcionários. Isso porque ela manifestava uma extrema dificuldade em evidenciar as percepções sobre o que não estava dando certo no trabalho de uma maneira assertiva. Então, ela acabava deixando muitas vezes de dizer o que a desagradava. Com isso, a pessoa, que usualmente era uma empregada doméstica, não apenas fazia o que queria e muitas vezes não correspondia na totalidade às tarefas que foi contratada.
Além disso, o vínculo que a gente criava com essas funcionárias era muito intenso. Isso era muito diferente, por exemplo, de pessoas que dizem que a empregada faz parte da família de uma maneira até questionável e questionada criticamente, como no caso do filme com a Regina Casé, “Que Horas Ela Volta?”.
No nosso caso, não havia separação tácita entre os níveis de autoridade e cobrança entre mim e as funcionárias, por exemplo. Não é exagero dizer que, certas vezes, elas ficavam tão à vontade que a gente começou a trabalhar para elas. Como no caso em que uma faxineira ficava chateada quando minha mãe não conseguia preparar o café da manhã para ela. Também, esse envolvimento emocional não raro revela-se prejudicial à relação entre patrão e empregado. Era como se, em alguns casos, elas manipulassem a gente pelo coração.
Havia um exemplo de funcionária que era mestre em fazer isso. Ela chegou a roubar coisas lá de casa, mas a mamãe a perdoou porque queria apostar no bom coração dela. E chegou a pagar terapeutas e tratamentos para ela, que tinha problemas físicos e mentais relacionados à obesidade mórbida. Eu gostava muito dessa empregada e babá, porque ela me levava para fazer tudo o que mamãe, como autista, não dava conta. A gente ia às lojas e ao cinema juntas, sempre. Porém, com o tempo, descobrimos que ela era estelionatária e falsificava documentos. Mesmo assim, mamãe demorou bastante para demiti-la.
Apesar disso, essa doçura no envolvimento com faxineiras e empregadas domésticas teve seus ótimos ganhos. Assim, conhecemos pessoas maravilhosas, como a Lucimar, que trabalhou conosco por dois anos, e a Ana Paula, que tempos depois tornou-se uma mulher muito bem-sucedida nos campos amoroso e profissional. Inclusive, depois de ter os dois filhos, ela ligou para minha mãe e pediu desculpas por ter me tratado possivelmente mal quando era mais nova, e disse que jamais perdoaria se alguém fizesse isso com os filhos dela. Mal ela sabia que o lugar de uma das pessoas inesquecíveis e com marcas positivas em minha trajetória está assegurado para ela, que se tornou uma grande amiga.
Agora, eu e minha mãe estamos devidamente diagnosticadas, com acompanhamento médico e psicológico para essas questões pertinentes ao TEA que moldam nosso comportamento perante às situações. Porém, se você apostar que mudamos o nosso jeito com nossas funcionárias, você está enganado. Quando a pessoa tem os mesmos valores e princípios que nós, vale muito a pena nos entregarmos de coração a uma amizade com nossas funcionárias.
Inclusive, lembro-me do filme “Crash: No LImite”, vencedor da categoria principal no Oscar 2006. Neste longa-metragem, a atriz Sandra Bullock (ganhadora do Oscar por “Um Sonho Possível“, três anos depois) interpreta uma socialite, esposa de um promotor que leva uma vida solitária. E percebe, após uma queda, que a empregada é a sua melhor amiga. Afinal, enquanto seus colegas socialite recusam auxiliá-la para fazerem massagens, o vínculo com a empregada doméstica se evidencia o mais forte e genuíno. Isso não é nada incomum em nossa trajetória.
Portanto, sou imensamente grata porque eu e mamãe encontramos a nossa colaboradora de Belo Horizonte, Simone. Ela é uma mulher com o mesmo jeito carinhoso e afetuoso que nós. E sabemos reconhecer que isso é raro. Assim, estamos sempre torcendo pela família de uma pela outra e procurando sempre ser a melhor presença umas nas vidas das outras. Além disso, o bom-humor que salvou a relação entre mim e mamãe nos tempos mais tempestuosos também está presente em nosso cotidiano com a Simone. Final feliz para essa história!
Sophia Mendonça é jornalista e escritora. Também, atua como youtuber do canal “Mundo Autista” desde 2015. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Assim, em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Já em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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