Precisamos falar sobre o trauma na vida da pessoa autista. Afinal, o trauma psicológico no autismo, ou mesmo entre pessoas neurotípicas, é uma resposta emocional a um evento que deixou feridas na memória e no conceito de identidade de alguém. Com isso, a pessoa pode sentir uma sucessão de emoções negativas, que podem aparecer logo após o acontecimento ou a longo prazo. Em decorrência, as pessoas traumatizadas se sentem recorrentemente desamparadas, oprimidas e paranoicas.
Isso acontece porque elas têm a consciência de que poucos conseguirão compreender o que passaram. Esse pensamento não é de todo inverídico, embora certamente não seja funcional para alguém que deseja desenvolver uma maior qualidade com as relações em seu entorno e, para isso, precisa de em algum grau manifestar confiança pelas pessoas ao redor.
Eu me lembro de um filme chamado “Bela Vingança“, que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original em 2021. Nele, a protagonista passou a vivenciar uma existência deprimente após passar por uma situação abusiva na universidade. Porém, tanto a direção do lugar quanto os colegas preferiram seguir as vidas sem buscar compreender o problema em sua profundidade. Com isso, há muita condescendência com os abusadores e uma violência intragável com as vítimas.
Eu me identifiquei com esse filme porque passei por uma situação muito similar. Após sofrer violência doméstica de um colega e ex-namorado, tive que ouvir de uma professora, especialista em vulnerabilidades: “Se fosse sério, você não quereria apenas uma medida protetiva. Você o teria processado”.
Eu a havia contactado porque não me sentia segura nem confortável para dividir os espaços físicos com ele da universidade. Então, queria que ela me ajudasse a pensar em uma possibilidade alternativa de eu frequentar os processos, já que meu ex também era aluno. Não apenas a universidade negou esse pedido, como eu ainda tive que ouvir da “especialista” em acessibilidade: “A universidade não enviou um comunicado formal”. Depois, ela começou a fazer uma série de postagens em redes sociais na qual dizia que não iria “salvar as pessoas” e que “pessoas feridas ferem”, fazendo alusões a diálogos particulares dela comigo.
Fiquei muito magoada, pois ela estava me julgando como louca mesmo sabendo do meu diagnóstico e da situação que vivi. Essa culpabilização da vítima me lembrou muito o que acontece no filme “Bela Vingança”, assim como a indiferença pelo sofrimento e a violência sofrida por uma outra pessoa.
Portanto, a experiência do trauma é muito solitária e deixa sequelas. Por exemplo, alguns indivíduos podem desenvolver uma mania de perseguição e acreditar que os outros querem causar mal a eles. Já outros optam por se afastar das relações interpessoais por completo por temerem reviver situações semelhantes. Eu mesma já fiz isso algumas vezes. Por exemplo, quando era adolescente e uma suposta amiga me difamou pela escola, me deixando isolada e sem colegas próximos, eu passei a conter tanto as minhas manifestações públicas que o processo culminou em três anos de fobia social. Este período ocorreu entre 2012 e 2014. Na época, eu assistia às aulas tremendo e com taquicardia. Além disso, não conseguia apresentar trabalhos ou falar em público.
Ser autista é viver em um mundo extremamente propício a traumas. A criança autista, por exemplo, é muito ingênua. Assim, ela não consegue perceber quando desagrada. Mas, como tem um comportamento peculiar, as pessoas tentam enquadrá-la no que é considerado normal. E aqui nem vale entrar no mérito sobre se isso é certo ou errado. Afinal, tudo depende do contexto e é essa a realidade que vivemos.
Autistas são, em geral, muito mais vulneráveis a experiências traumáticas. Isso porque usualmente estamos expostos desde a tenra infância a estímulos sensoriais aversivos, demandas sociais difíceis de atender, mudanças inesperadas, entorno pouco compreensivo com as nossas necessidades, interações negativas, maiores índices de rejeição, isolamento social e bullying
. Ocorre que o peso de sofrer com a segregação e a humilhação é forte demais para ser suportado desde o início da vida. Então, o que geralmente acontece com a autista é ter a pureza original substituída por um profundo ceticismo. Não à toa, existem autistas adultos extremamente rancorosos com o mundo que lhes recusou a chance de se expressar. Ou seja, não procurou entendê-los.Em meu livro “Outro Olhar” (2015), registrei que trauma é o motivo pelo qual não devemos julgar ninguém. Afinal, cada pessoa tem marcas na própria trajetória que ajudaram a moldar quem ela é. Essas marcas, muitas vezes desconhecidas pelos outros, podem ter efeito tanto positivo quanto negativo Dessa forma, a pessoa autista se esforça para deixar latente a parte dolorida do sofrimento e usufruir do aprendizado que todos esses momentos traumáticos lhe trouxeram. Mas, a grande chave disso é a incompreensão. Isso porque a autista traumatizada usualmente tem esse sentimento por causa da incompreensão do mundo. Então, quando ela se sente forçada a entender as regras e todos ao redor, sem que ninguém faça o mesmo por ela, a consequência é uma crise.
Neste sentido, há uma diferença entre efeito latente e efeito manifesto. Afinal, o que se manifestar influenciará na visão de mundo da pessoa e o comportamento dela perante a sociedade. Nossa luta é para que o efeito manifesto seja positivo, como no caso de alguém que saiu de situação muito difícil e agora ajuda outros que vivem a mesma realidade. Dessa forma, o sofrimento não deixa de existir, mas se torna mínimo, como um pouco de tinta jogado em uma bacia grande de água.
Sabemos que a rigidez cognitiva, aliada à menor percepção de emoções e pouca compreensão do contexto social, assim como dificuldades na comunicação e autorregulação afetam a maneira como reagimos a situações extremas. Tudo isso tem impacto direto em nossa capacidade de tolerar sofrimento e elaborar respostas adaptativas. Portanto, é necessário compreender de maneira ampla os contextos que aparecem nos comportamentos de pessoas autistas que são julgados como problemáticos, em vez de simplesmente focar em uma intervenção para eliminá-los. Afinal, mais interessante que isso é auxiliar no desenvolvimento de estratégias para lidar com as próprias emoções.
No fim, o que todos queremos é afeto. Porém, ele muitas vezes é negado à pessoa autista. Apesar disso, cada um que tenta entendê-la e gosta verdadeiramente dela, que lhe dá a chance de fazer parte de um grupo e ser ela mesmo, contribui para uma bem-sucedida inclusão social. E é por meio dessa inclusão que podemos transformar uma realidade tão dolorosa para muitos autistas.
Sophia Mendonça é uma jornalista, escritora e pesquisadora brasileira. É mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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