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O ser humano desumano

Selma Sueli Silva e Camila Marques

Selma Sueli Silva e Camila Marques discutem a desumanização do ser humano e quais as consequências para a sociedade e para ele próprio.

Camila Marques e Selma Sueli Silva no programa As Divergentes https://youtu.be/AECSyYUruts

Selma Sueli Silva: Vamos falar sobre a desumanização do ser humano. Quando você se vê diante de uma notícia de um crime hediondo, você ouve muitas pessoas falando: “Isso não é gente, isso é um animal”. Não é legal esse tipo de comparação, pois precisamos respeitar os animais. Porém, quando você tira do ser humano sua condição de humanidade, fica mais fácil de fazer ou desejar as piores coisas para a pessoa. Você transforma a pessoa em um não-sujeito. Assim fica mais fácil pensar que ela não precisa nem ter direito civil, ou direito algum. Você pode fazer o que você quiser com essa pessoa e isso é muito sério. No caso de um crime hediondo, as pessoas podem até questionar se vale a pena pensar nesse sujeito, se ocupar com ele. Eu não estou falando isso. O que estou falando é que eu quero que tenham leis e um sistema prisional que deem a essas pessoas o efeito da causa que eles deram proporcional ao crime cometido. Quanto maior a causa, maior será o efeito. Mas eu não quero ver esse cara esquartejado em praça pública, eu não quero ver esse cara condenado à pena de morte. Eu posso até querer que ele tenha prisão perpétua, se eu não acreditar na reabilitação dele, mas nunca pena de morte. Porque senão, eu me igualo a crueldade dele.

Eu estava vendo um seriado que se chama Fronteiras (seriado da Fox). E aí, em determinado momento, essa Divisão de Fronteiras, uma parte do FBI, luta contra coisas como universo paralelo, vida pós morte entre outras. Na quinta temporada, uma raça que não é humana tomou conta do mundo e o remanescente da Divisão de Fronteiras tenta salvar o mundo das garras desses seres. em contrapartida, alguns humanos se uniram aos não humanos. A mocinha conversa com um deles e questiona: “Porque que você fez isso?”. Ele respondeu: “Ah, para ter segurança entre eles, por medo. Eu percebi que ser resistência e lutar estava colocando a minha família em risco. Depois de tudo que eles fizeram com a gente, depois de tudo que eles fazem, de tudo que eles trouxeram, humanos e não humanos estavam muito extremistas, e eu fiquei do lado que me dava mais segurança.”. Mas a mocinha ponderou: “O que me preocupa, mais do que eles trouxeram, é o que eles nos tiraram”. Tirar a humanidade da gente, é uma coisa muito grave. Colocar a gente no mesmo nível deles é muito grave. E isso, se você for pensar, não é de hoje que vem sendo feito, como forma de dominação. Por que ainda hoje, têm pessoas que acreditam na superioridade da raça branca? Porque em determinado momento, eles tiraram da raça negra a condição de ser humano para transformá-la em em mercadoria, os escravos. Dessa forma, ficava fácil fazer com aquela “mercadoria” o que bem entendessem. Mas não era assim, todos eram e são seres humanos. Então, quem cometer qualquer ação contra a pessoa negra, está cometendo crime contra o ser humano.

Quando tiram da pessoa deficiente a condição de sujeito dizendo, “Mas olha, ele é autista severo. Ele fica agressivo, ele agride, ele não entende, ele vive no mundo dele. Ele não sabe responder por ele.”, que é tirado é a condição de sujeito e esse autista passa a ter dificuldades de acesso a seus direitos. Mas nunca um ser humano vem ao mundo sem uma missão, sem um motivo e deixa de ser humano. Então, em que ponto a gente chegou ao desumanizar as pessoas e justificar as nossas ações negativas com relação a elas. Em qual ponto a gente perdeu a nossa capacidade de enxergar o outro mesmo quando ele tem atitudes tão difíceis de a gente entender ? Como, por exemplo, algumas atitudes do presidente, algumas atitudes da extrema esquerda e da direita direita, que a gente tem dificuldade de entender. Quando eles perderam essa conexão do ser humano, que leva em consideração o outro para construir um bem comum para todos?

Eu não sou romântica ao ponto de achar que o mundo ideal não vai ter problema nenhum. Eu acredito que o problema faz parte e vou falar uma coisa que vocês vão assustar: Que venham os problemas, pois cada problema significa a oportunidade que a gente tem para ser melhor. Eu acredito no mundo em que as pessoas vão continuar sendo diferentes que vão continuar sendo contraditórias, vão continuar tendo um tanto de coisas diferentes. Mas, qual a forma de lidar com essas “divergências”? A solução sempre vai passar pela consideração do outro, prioritariamente o ser humano. Qualquer que ele seja.

Por isso, eu quero hoje um sistema prisional justo porque se essa pessoa fez um mal ao meu filho, eu não quero ser igual a ela e desejar que ela seja picada em mil pedaços. Eu quero sim que a justiça seja feita e que ela sinta o peso da justiça do sistema prisional, porque isso faz parte do coletivo, do humano. Mas para isso, a gente tem que melhorar as condições desse sistema. Eu não quero me perder de mim nunca, me perder da minha humanidade. Você acha, Camila, que às vezes, a gente desumaniza o ser humano para ficar mais fácil de a gente driblar a nossa consciência?

Camila Marques: Eu não consigo imaginar o mundo sem a sensibilidade. Porque é a sensibilidade que te permite enxergar as coisas que não estão óbvias

. E até às óbvias. É a sensibilidade que te faz ter a percepção do conjunto e, através dessa percepção de conjunto, a gente tem a percepção de sociedade, percepção de alcance, do que uma atitude pode mudar a nossa vida e a vida dos nossos à nossa volta. Estamos vivendo um período que, até o presente momento, nós tivemos 140 mil* perdas de vidas pela Covid-19. A forma com que as coisas foram conduzidas desde o começo da pandemia pelos políticos foram determinantes para isso. É muito importante considerar esse aspecto porque, até pela localização e o epicentro do vírus na China, o vírus aqui chegou depois. Quando estávamos assistindo a tragédia na Itália, com as mortes em Milão, nos perguntávamos: “Nossa, porque não fizeram nada antes?”. Hoje, a questão é aqui. É a nossa volta.

Selma Sueli Silva: Tivemos a oportunidade, porque muitas pessoas sofreram antes de nós. É real, o governo brasileiro, nas esferas legislativa e executiva, não conduziu a situação de maneira que o Brasil sofresse menos.

Camila Marques: Hoje, no bairro Mantiqueira (bairro de BH, localizado na região de Venda Nova) é um dos epicentros de casos de Covid. A região onde há a maior notificação de casos é o Bairro Lourdes** (Zona sul de BH). Mas, temos que partir da lógica de que, nos bairros de classe média, as pessoas com maior poder aquisitivo, ao sentirem qualquer sintoma, já fazem o teste. O que não acontece nos bairros onde os moradores possuem menor poder aquisitivo? Nos bairros mais simples, ao procurar uma unidade de saúde, se você não tiver em um estágio avançado, o profissional de saúde te manda de volta para casa. Não por negligência, mas por falta de insumos.

Selma Sueli Silva: E não adianta pensar que “é bom que leva uma leva de gente que não está produzindo tanto, gente que consome as políticas públicas e que gasta dinheiro do contribuinte brasileiro”. Não adianta pensar assim porque não existe uma necessidade em uma ponta que não chegue à outra. A pandemia também mostrou isso. Tudo começou lá na China. Não adianta falar que o vírus foi fabricado na China. Tudo que aconteceu lá refletiu em nós.

Camila Marques: Até porque, por trás da política pública, há muita burocracia. Não se trata de algo tão simples. Cento e quarenta mil pessoas são municípios inteiros, dependendo do país, são países inteiros. Os mortos da Covid-19 são pais, são mães, familiares. Como nos programas do Mundo Autista pontuamos: tudo começa a partir da gente. Tudo começa pela conscientização: “Ah gente, mas não dá para ficar em casa”. Cada um sabe da sua realidade. Vivemos em um país com mais de 12 milhões de pessoas desempregadas e 38 milhões na informalidade. Os auxílios sociais não chegam para todos. O “fique em casa” não pode ser resumido a “vou parar de trabalhar”. Não, tem gente que precisa trabalhar e essa não é a questão aqui. A questão é cada um fazer a sua parte. Hoje, a nossa equipe atua home office. Para nós, é mais tranquilo. Mas, se você precisa sair para trabalhar, lave suas mãos, leve seu álcool gel. Use sua máscara.

Todas as vezes que vou ao comércio, eu sinto muita aflição ao ver as pessoas usando máscara errado. Se você que acompanha nosso programa é idoso e é aposentado, fique em casa. Eu sei que a saudade é grande e a solidão aperta. Faz seis meses que não vejo meus amigos, deixei de ir à escola, deixei de fazer meu exercício físico externo. Logo, não estou isenta. Mas, temos que fazer isso em prol de causas maiores. Em prol do que é maior. Se eu ficar doente, eu tenho mais chance de atravessar a doença que a minha mãe, que precisa sair para trabalhar. É a questão de pensar no próximo. Eu não sei as condições de você que nos acompanha, mas não se deixe afetar por essa vida tirana, essa realidade tão caótica que a gente está vivendo. Agora, estamos acompanhando as queimadas no Pantanal, declarações absurdas, a questão da vacina, na Caixa Econômica Federal temos filas enormes: tudo isso nos afeta. Mas, não deixe de cuidar de si, não deixe de cuidar dos seus. Não deixe de fazer a sua parte. Se perdermos a sensibilidade, não deixamos de ser cruel com o próximo e sim com nós mesmos.

Selma Sueli Silva: Uma pessoa importa. Com certeza, a ação de uma pessoa importa. Vamos fazer a nossa parte.

*Na semana em que gravamos o programa, o Brasil tinha registrado 126 mil mortes. Hoje, infelizmente, chegamos a 140 mil. Por isso, os dados da nossa versão em texto divergem dos dados relatados na versão vídeo.

**Conforme dados divulgados pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) em junho deste ano.

Mundo Autista

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