Hoje o assunto é o diagnóstico recente da Sia. Ela é uma cantora que muita gente adora pelo trabalho artístico. Mas que, há dois anos, foi cancelada pela comunidade autista por dirigir um filme chamado “Music”. Esta obra foi alvo de diversas polêmicas sobre a maneira capacitista como aborda o autismo.
Assim, o diagnóstico pode ter pego muita gente de surpresa e alguns até nem tanto. Eu confesso que não fiquei nem um pouco chocada. A gente tem na música exemplos como a Courtney Love e outras pessoas que têm perfis relativamente próximos, são diagnosticadas autistas e já falaram publicamente sobre isso.
Mas, por outro lado, tudo isso me fez refletir bastante sobre os ataques e as controvérsias em torno de Sia ter feito aquele filme, que é realmente pavoroso, há dois anos. Music chegou a ter duas indicações ao Globo de Ouro. Não à toa, a premiação teve a cerimônia presencial cancelada no ano seguinte pelas indicações controversas. O longa-metragem também teve nomeações ao Framboesa de Ouro, que é uma espécie de Oscar para os piores filmes.
Algumas críticas ao filme “Music”, da Sia, tinham muito como base ela ter escalado uma atriz que não era autista para o papel de uma personagem com esse diagnóstico. Isso em tese não seria problema, porque a função de atuar é mesmo tornar-se alguém. Ou seja, a palavra mascarar no significado raiz. Portanto, no sentido de transformar-se em alguém que você não é. Então, até aí tudo bem.
Só que a gente sabe que, com essa escolha dela, atrizes que são autistas e muitas vezes não têm a chance de protagonizar uma produção desse porte em Hollywood ficaram de fora do papel. Então, isso dá uma sensação de cinismo ao filme. Um outro ponto foram cenas de contenção que ela até pediu desculpas.. Inclusive, ela chegou a apagar a conta dela no Twitter à época, em decorrência das polêmicas.
Além disso, o diagnóstico da Sia vem depois do Elon Musk. E quando o Elon Musk revelou ser autista, eu fiz um vídeo analisando de uma perspectiva mais comunicacional as interações das pessoas com esse diagnóstico. Já com a Sia, eu percebo que há questões muito diferentes. Claro, não é a mesma pessoa nem a mesma circunstância. O que eles têm em comum, além da fama, é uma maneira de agir que muitas vezes não é bem vista pelos próprios ativistas autistas.
Porém, falando especificamente da Sia e do filme Music, tudo isso me levou a uma reflexão sobre o lugar de fala. Afinal, as críticas direcionadas ao longa-metragem tiveram como foco como se a Sia fosse uma neurotípica. Portanto, nessa leitura ela seria alguém que, com uma visão totalmente capacitista e sem conhecer com profundidade aquilo que aborda, impusesse uma perspectiva, sem lugar de fala como autista, para o público. Ou seja, é como se tivesse uma limitação na assimilação dela do que seria o autismo. Então, para traduzir isso em arte, seria complicado. E ela não teve a humildade de reconhecer isso, segundo tal análise.
Mas agora, a Sia falou que passou por momentos muito difíceis e viveu com muita camuflagem social e inclusive teve que “colocar o traje humano” (palavras dela) para interagir socialmente. Enfim, vendo tudo isso e lembrando do conceito de lugar de fala, eu me lembro muito daquele livro “O que é lugar de fala?”, da Djamila Ribeiro. Esta é uma obra muito bacana sobre o conceito científico, que muitas vezes a gente banaliza e até deturpa no ativismo.
Então, o que a Djamila propõe nesse livro é que o lugar de fala não significa, por exemplo, que você por ser autista vai saber mais de autismo do que alguém que não é autista, necessariamente. Ou seja, o fato de você ser autista não garante a consciência do que representa ser autista na posição que você está. Posição essa que, no caso da Sia, é a de uma mulher branca, com várias características, que é autista. Mas, isso não faz dela uma especialista. Ou ainda, alguém que entenda profundamente do autismo só por ter lugar de fala. Afinal, muitas vezes a gente se confunde no senso comum.
Na verdade, todo mundo pode falar sobre o que quiser. Porém, a gente fala de uma posição que nos dá uma perspectiva diferente. Por exemplo, se eu sou autista e falo de autismo, eu vou ter uma perspectiva distinta do que teria se eu não fosse autista. Além disso, a gente vem compreendnedo melhor a noção de interseccionalidade com autoras dos feminismos negro e trans. Ou seja, as características da pessoa que compõem o lugar de fala interagem entre elas de múltiplas maneiras.
Então, o lugar de fala não é para você falar: “a Sia sabe mais de autismo porque ela é autista”. E sim, para mostrar que ela tem uma característica que faz ela ter uma visão mais próxima e afetiva ao autismo. Porém, isso não significa que ela vá fazer um trabalho artístico que alguém que não é autista faria pior. Ela pode fazer um trabalho menos empático, talvez até por uma visão mais ensimesmada, que não atinja o coletivo das pessoas autistas de uma maneira que uma pessoa neurotípica talvez conseguisse captar melhor. Isso, por meio de trabalho, estudo e pesquisa.
Sia foi muito criticada por algumas escolhas narrativas que não se provaram convincentes para as pessoas autistas. Só que eu fico pensando que a arte envolve uma série de tentativas e erros, de criatividades e ousadias que nem sempre dão certo. Então, um filme pode ser um fiasco por vários motivos. Isso não necessariamente significa que a pessoa que criou tenha uma má intenção.
Se olharmos por esse lado, podemos perceber a Sia de uma outra forma. Afinal, eu fiquei muito tocada quando ela falou de vestir este traje humano. Ou seja, de tentar se forjar em uma outra personalidade que não é a sua para tentar agradar e se encaixar ao mundo. Isso é muito doloroso para muita gente.
Tudo isso levanta um debate muito importante, que pode chegar a muitas pessoas, sobre o diagnóstico no adulto e na mulher adulta. E, também, acerca do masking ou camuflagem social. Afinal, é essa a maneira que as pessoas autistas muitas vezes compensam ou “disfarçam” características do diagnóstico de modos muitas vezes inconscientes Porém, os médicos raramente conseguem lidar e interpretar este sinal como um diagnóstico de autismo.
Olhando por esse prisma, é até positivo que uma pessoa com as características dela tenha divulgado isso. E eu lamento muito que ela tenha sido tão atacada, embora não esteja aqui relativizando ou minimizando os erros dela. Isso porque penso que há razão nos argumentos. Porém, uma coisa é atacar ideias, outra bem mais delicada é atingir pessoas. Até porque, no fundo, a Sia tinha esse lugar de fala. Ela só não manifestou a consciência de como trabalhar isso da melhor maneira.
Então, o que eu desejo agora é que o diagnóstico da Sia seja mais um passo na conscientização do autismo na mulher e em adultos. Isso por ela ser uma figura pública expressiva. E o mais importante, que no fim é o que importa para todos nós: que ela fique bem. Ou seja, se recupere das sequelas de um masking tão exaustivo. Afinal, forçar um comportamento neurotípico é uma autoviolência que a gente faz muitas vezes pela pressão dos outros. E não porque a gente quer. Enfim, que ela consiga trabalhar isso e ficar bem. No final, é isso que importa. Este é o meu desejo para Sia.
Sophia Mendonça é uma youtuber, podcaster, escritora e pesquisadora brasileira. Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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