O livro Autismos, publicação da Juruá Editora, acompanha nossa trajetória, de mãe e filha, ambas autistas. Essa observação ocorre por meio de uma perspectiva afetiva de pesquisa. Ou seja, a obra visa dialogar as experiências singulares das autoras com debates científicos sobre o tema. Portanto, traz reflexões de pesquisadores acadêmicos costurando a narrativa de nossas vidas de escritoras e influenciadoras. Aliás, nós nos tornamos vloggers autistas com carreira das mais duradouras no YouTube brasileiro. Isso porque apresentamos como mãe e filha o canal Mundo Autista desde 2015, com vídeos que compreendem as nuances e possibilidades diversas da condição neurodivergente.
No prefácio da publicação, a pesquisadora e neuropediatra Liubliana Araújo (Universidade Federal de Minas Gerais-Harvard) registra que o livro traz as diferenças do que é ser um bebê com dificuldades relacionadas ao autismo. Ou seja, quais são os desafios durante o crescimento, os entraves relacionados à comunicação, ao comportamento e à interação social. Com isso, “Autismo(s)” mostra que o autismo é um espectro. Afinal, cada pessoa manifesta as características de uma forma diferente da outra.
Segundo a professora da UFMG, “talvez o mais bonito dessa história é o quanto nos convoca à intimidade com a diferença, sejam as diferenças entre elas – Selma e Sophia –; seja perceber o TEA, um espectro, sem linearidade; ou ainda, e sobretudo, a afirmação do autismo como um modo de ser no mundo, diferente de outros, e pleno de possibilidades”. Isso porque, no livro, o foco não se restringe à reprodução da literatura científica, também se abre para a observação dos autistas adultos.
Dessa forma, alguns conceitos foram ampliados e outros, descartados. Como aquele de que o autista vive em seu mundo próprio e não gosta de contato social. Afinal, o autista decodifica o mundo de maneira diferente. Isso o limita na comunicação com o outro. Porém, se o outro não se dispuser a interagir, a procurar entender como o autista funciona, independentemente da classificação no espectro, esse autista vai se fechar e acreditar que o contato com o outro é sempre ruim.
Muita gente não deseja que o filho saiba do diagnóstico com medo de ele se sentir frágil e vulnerável, o que são rótulos que se colocam. No livro, Sophia narra que já se sentia dessa forma desde antes do diagnóstico. Portanto, o laudo a fez perceber o porquê, que a levou para o “como vou agir agora”. Ou seja, “somos autistas, mas não o autismo”.
Além disso, o livro Autismos revela a percepção da família de que o autista parece se interessar mais por objetos do que propriamente por pessoas: “mãe e filha perceberam que é muito mais divertido lidar com os objetos, afinal, eles se tornam o que o autista quiser. Já na interação com as pessoas, há muita informação visual no rosto, na fala, nos gestos e, como se não bastasse, o contato entre sujeitos envolve troca, ação e reação”.
Além disso, Autismo(s) problematiza a noção de que somos do tamanho de nossa linguagem. Afinal, é ela que confere sentido a todos os fenômenos e acontecimentos e antecede a existência de cada um de nós. Porém, a obra defende que o autismo veio para dar uma mexida nesse paradigma, embora ele seja facilmente aplicável à maioria das pessoas.
Isso leva ao seguinte questionamento: como trazer ao mundo da linguagem essas pessoas que têm vasto universo interior, mas dificuldades variadas e, por vezes, severas em se comunicar, tanto no âmbito verbal como no não verbal? Há uma série de entrevistas que visam esclarecer angústias muito comuns entre os pais e mães: “será que o atraso de fala do meu filho é autismo?” e “será que o meu filho vai falar?”.
Sophia: Há um trecho no qual me lembro que minha primeira melhor amiga, certa vez, me chamou na escola para passar o recreio com ela. A menina sentia pena por eu estar sempre sozinha. Isso era realmente um incômodo para mim, em determinados momentos. A partir dessa amiga, que me transportou para o grupo dos “populares” do qual fazia parte, passei a procurar por uma pessoa para esse apoio nos grupos em que convivia.
Antes disso, assim como já aconteceu com a minha mãe, eu até interagia bem com outras pessoas e colegas, mas não criava laços de amizade. Não conhecia e nem dominava as regras sociais para manter uma amizade. Os momentos mais difíceis foram quando me via desamparada, em um grupo que não tinha uma pessoa amiga para decodificar as situações para mim. A importância de alguém de suporte num grupo é que essa pessoa traduz a linguagem das outras crianças e dos adolescentes para o autista.
Em outro momento do livro, são definidas as diferentes manifestações de crises no autismo com exemplos de vida. Selma: conto casos que vivenciei como chefe da assessoria de imprensa do Instituto Nacional do Seguro Social de Minas Gerais (INSS-MG). Certa vez, pedi para que uma funcionária se relacionasse com sua faceta democrática. Afinal, eu me esforçava para ver uma situação por vários ângulos e do ponto de vista das pessoas envolvidas. Então, eu implorei para que as funcionárias evitassem minha faceta autoritária. Isso porque, “nisso ela era muito hábil e competente, com a sutileza de um elefante.” Nesse capítulo, também é abordado o sentimento de culpa pós-crise.
Também, o livro Autismos reflete sobre conceitos de empatia no autismo. Afinal, com a descoberta de que Sophia era autista, eu, Selma, estranhava alguns comportamentos que antes passavam despercebidos. Assim, depois do diagnóstico, explicaram-me que autista não tinha empatia. Será? Eu podia estar muito triste e se não explicasse isso à Sophia ela não percebia. Mas, quando explicava, ela sofria junto. Se alguém morria, aquilo era algo natural da vida, porém ela ficava infeliz quando entendia as consequências daquela morte na vida de muita gente.
Sobre a seletividade alimentar, nos baseamos na literatura sobre fonoaudiologia e terapia ocupacional para concluir a importância de determinados rituais, como manter o horário das refeições. Afinal, “o ato de se alimentar não é só comer e pronto. Envolve todo um ritual, um processo. No tratamento com a terapeuta ocupacional, pode-se trabalhar a sensibilidade sensorial. Primeiro, o autista aprende a estar na mesa. O ritual da alimentação deve ser especial e marcante”.
Além disso, relatamos a vida em sociedade de um adulto autista que apresenta dificuldades nas funções executivas. Isso significa que ele tem dificuldade de organizar e definir prioridades; focar e mudar o foco; regular o estado de alerta; manter o esforço; administrar os resultados; regular a velocidade de processamento de informações na mente; utilizar a memória; monitorar e controlar de atitudes.
Autismo(s) conta com várias participações especiais. Uma delas é do professor universitário Maurício Guilherme Silva Júnior, que atuou como orientador científico de Sophia. Ele conta: “Se, a meu modo, busco organizar processos, tempos e lógicas teóricas – de maneira a proporcionar conforto psíquico à Sô –, ela, com intensidade similar, redefine, realinha e reaviva meus próprios parâmetros do que seja a busca pelo conhecimento”.
Também, a inclusão no ensino superior ganha espaço no depoimento da psicóloga e intérprete educacional Ana Pascotto: “Não significa que negamos as dificuldades que Sophia possuía, mas direcionamos nossa atuação para o que ela podia fazer de uma outra forma, para chegar nos resultados assim como seus colegas de sala. Isso é equidade.”
Além disso, o livro conta com a participação do pai de Sophia, Roberto Mendonça. Ele, que já foi definido como o pé-de-coelho da crônica mineira por autores como Roberto Drummond e Luís Giffoni, revela pela primeira vez que muitas pessoas julgavam ser ele o autor das primeiras obras de Sophia. Ele relata: “sempre que questionado, respondi que Sophia Mendonça era surpreendente. Ela é assim: raramente comete erros, ao contrário de muitos escritores com os quais tive a oportunidade de trabalhar nos últimos trinta anos, alguns deles consagrados. Além da competência no trato com as palavras, Sophia é objetiva, sensível e crítica ao imprimir ideias e narrativas.”
Outras aparições são da professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do grupo de pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Vulnerabilidades (Afetos), Sônia Caldas Pessoa, e da saudosa professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Raquel Romano, cujo trabalho se voltava à arte-educação. Enquanto Sônia assina um capítulo sobre o impossível e os sonhos, Raquel registra que “ Sophia ultrapassou os padrões convencionais de estimulação específicos para autistas, numa jornada que abre brechas à revisão de práticas e de novas possibilidades libertadoras para tantas crianças e, também, para muitos jovens e adultos diagnosticados com autismo.
Sophia Mendonça é uma jornalista e escritora. Também, atua como youtuber do canal “Mundo Autista” desde 2015. É mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Assim, em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Além disso, em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
Por sua vez, Selma Sueli Silva é criadora de conteúdo e empreendedora no projeto multimídia Mundo Autista D&I, escritora e radialista. Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial (IEC/MG), ela atua como editora no site O Mundo Autista (Portal UAI) e é articulista na Revista Autismo (Canal Autismo). Assim, em 2019, recebeu o prêmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+. Prêmio Microinfluenciadores Digitais 2023, na categoria PcD. Além disso, é membro da UNESCOSOST movimento de sustentabilidade Criativa, desde 2022.
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