Victor Mendonça e Raquel Romano
Victor Mendonça: Eu fico pensando muito nessa questão do lúdico no adulto. Às vezes, a gente consome entretenimento que, em em inglês, eles usam uma expressão que quer dizer “prazer culpado” (guilty pleasure), que são aqueles entretenimentos que a pessoa assiste, mas tem vergonha de dizer, que se referem a coisas muito bobas e com o único objetivo de entreter.
Nessas últimas semanas, a gente teve a notícia de que a série Keep up with the Kardashians (reality produzido pelo canal E!) vai ser finalizada depois de 20 temporadas, em 2021. Essa série de reality show foi e é um grande sucesso. Ela permitiu que todo o clã Kardashian conquistasse suas carreiras. Por exemplo, a bilionária mais jovem do mundo (a empresária Kylie Jenner) é integrante da família. Mas a gente sabe que, nesse caso, o reality show é meio armado. Mas, Raquel, é uma coisa bem bolada, mesmo a gente sabendo de certas armações. Neste caso, a realidade de vida das Kardashians é muito diferente da vida da gente. Por exemplo, elas agem assim: “estou sofrendo, mas vou sofrer em Paris”. Se teve uma briga de família, elas dizem: “vou esquiar”.
Fato é que esse reality estreou recentemente na Netflix e está fazendo muito sucesso. Então, é muito interessante ver como que isso vem sendo um produto da realidade, um entretenimento de realidade, embora tenha elementos fictícios, mas que muita gente se identifica com as questões dessa família. As pessoas assistem, primeiro, para se divertir com os barracos, como diz uma amiga, com “tiro, porrada e bomba”, mas também para se imaginar em um outro mundo, um outro universo, que não é real, que nem tem como ser real, mas que é vendido como um reality show. Desculpa eu falar tudo isso, Raquel, mas autista tem hiperfocos e um deles é reality shows.
Raquel Romano: Eu percebo Victor, que isso é muito interessante. O sofrimento delas não as consome. Elas não se afundam no sofrimento. Elas buscam uma válvula de escape prazerosa. Um contraponto entre o sofrimento e o prazer, a busca pelo prazer: para compensar. É bem assim: “Eu vou sofrer em Paris”. Tudo bem. Eu acho ótimo isso, para quem pode.
Victor Mendonça: Eu acho engraçado porque isso traz muito da gente. A gente tem essas válvulas de escape menores, resguardadas as proporções, mas eu também vejo nesse reality show que, como eu disse, lançou a carreira de toda a família, uma oportunidade muito grande de transformação até do “gênio” por trás disso, que é a mãe delas, a Kris Jenner. Aliás, quem conhece o caso do O.J. Simpson, ex-atleta americano, acusado de assassinar a ex-esposa, Nicole Brown, em 1992, que até virou série de tv e está disponível no streaming. Pois bem, a Kris Jenner era casada com um dos advogados do O.J. Simpson, mas depois ela criou essa série que transformou a vida dela como um todo. Ela transformou toda a realidade da família, é empresária e agencia todas as filhas, que hoje são pessoas com a vida de muito glamour. Não vou dizer uma vida grandiosa porque, não necessariamente, glamour e grandeza caminham juntos. Como você, Raquel, alguém que estuda a arte, a comunicação, avalia esse fenômeno? De uma coisa que é feita apenas para relaxar, depois de uma dia exaustivo e, ao mesmo tempo, traz essa exposição, da vida delas para o público.
Raquel Romano: Esse é o prazer que elas têm. E isso acontece com a gente também, depois de um dia exaustivo, eu posso colocar uma música e dançar, imaginar que estou dançando um tango em Buenos Aires, entende? Assim, eu vou me preenchendo desse prazer e isso é maravilhoso. porque funciona como uma terapia mesmo. Eu acho que a nossa mente tem capacidade de fazer viagens, essas viagens. E isso é muito interessante porque você escuta o seu desejo, a sua voz interior. Você vê pessoas se acabando no stress, no sofrimento e agora na pandemia, por exemplo, em atritos familiares. E as pessoas nem percebem que poderiam, imagina, brincar de reality show dentro de casa, criar jogos em casa, desafios uns com os outros. Tem muita saída para quem procura, de fato!
E agora, a gente volta lá na nossa tese, de brincadeira, porque brincar é coisa séria, traz a criatividade, esse olhar para dentro de si e descobrir que esse ambiente, esse clima não está legal e precisa se transformar. O que nós podemos fazer? Ao invés de bater boca, cada um com sua razão, a gente confronta a fantasia com a realidade e posso brincar com as ideias, trazer para dentro de casa, para as relações familiares isso. Tudo isso fazendo o meu próprio reality show e brincar com ideias criativas.
Victor Mendonça: E foi com essa simplicidade que elas conseguiram todo esse sucesso. No começo, eu ficava assim pensando em como a ideia era despretensiosa para fazer frente a séries muito boas, com atores mesmo participando e que, ainda assim, não fazem o mesmo sucesso que o reality faz. Mas depois, eu percebi que elas tiveram coragem de dar a cara a tapa numa questão que passa pela vida de todo mundo, que de perto, ninguém é normal e isso pode ser interessante. Mesmo com um programa roteirizado de TV, ainda que seja um reality show, tem esse recorte, essa narrativa. É interessante ver como, às vezes, as pessoas são muito mais simples do que parecem.
Raquel Romano: E eu acho interessante que o espectador, as pessoas, as famílias, se identificam exatamente porque não são grandes atores, porque é um ambiente de família. Então, isso fica mais próximo das pessoas, da família. Mesmo que inconscientemente, há uma identificação interessante. Por isso, eu acho que o sucesso tem muito a ver com isso daí, essa proximidade.
Victor Mendonça: Eu também acho. Há outros realities shows que podemos até não nos identificar com eles, como esse mundo de riqueza, de fama, das condições de trabalho. Mas, ainda assim, tem um quê do humano que todos temos e que atravessa tudo isso. Por mais que você chegue a essa narrativa recortada, esse lado humano que elas expõem, brigando, depois fazem as pazes e arrumam as coisas mais loucas para resolver os conflitos, são coisas que estão na gente. Conversar com você foi muito bom Raquel porque eu queria entender o fenômeno Kardashian, que acompanho desde 2007.
Raquel Romano: E a família continua, mesmo que haja conflito, eu acho muito interessante pensar nisso. Família é família. Pode ter conflitos, mas os familiares estão sempre juntos. Isso é muito bonito. Isso aí eu acho que vem trazer para as pessoas uma possibilidade até de uma vida mais lúdica, como você disse antes, sem tanto confronto, tanto estresse, uma grande missão até para este tempo de isolamento das pessoas, sabia? Eu vejo muito assim.
Victor Mendonça: Eu me lembro da minha infância, com meu hiperfoco em reality shows, o quanto eu brincava com isso. Por exemplo, eu acompanhava o The Amazing Race, e viajava o mundo com eles, e é bem isso. Nesse caso, tem a questão da identificação, de serem pessoas reais, vivendo situações que, em algum grau, todo mundo pode passar. Mas no caso das Kardashians tem essa questão de elas viverem de maneira mais lúdica. Acho engraçado, porque eu não pesquiso sobre reality show, inclusive , mas teve uma fase que eu pesquisava. Hoje não pesquiso tanto, embora seja na minha área, comunicação social e textualidades midiáticas. As pessoas, às vezes, acham que é uma coisa fútil, mas o que importa é o fôlego do pesquisador nessa coisa fútil. Olha o tanto de coisa que a gente conseguiu extrair daqui!
Raquel Romano: Exatamente. Eu acho interessante sim e é até uma lição, sabe, esse tipo de reality show. O que que eu penso: eles vivem um desafio. A vida é desafiadora. A vida familiar é desafiadora. E nós vivemos, diariamente, aprendendo na convivência familiar. Elas trazem para a gente essa saída lúdica, essa saída que pode nos dar muitas ideias. O que eu posso fazer no dia a dia para viver a minha vida com mais alegria, mais respeito.
Victor Mendonça: É interessante como eles vão transformando isso em um programa que mistura a exposição desses conflitos com a ludicidade. Claro que eu, Raquel, e parte de quem nos acompanha não pode sofrer em Paris, por exemplo. Mas, a gente busca por outros mecanismos, até assistindo a um entretenimento leve, ou mesmo assistindo ao “De brincadeira”,
Raquel Romano: Isso. Pensar leve é um bom caminho.
Victor Mendonça: Sentir que disso tudo podemos extrair algo, mesmo que seja de um programa como esse que é aparentemente bobo, mas que traz essas reflexões que não precisam ser problematizados, é só para assistir e viver.
Raquel Romano: Victor, a gente precisa aprender a rir da gente mesmo. De repente assim, uma gafe, um pensamento maluco. A gente ri de si mesmo é muito importante, sabe? É uma forma de a gente se aceitar. Na verdade, nós vivemos em um palco. A vida é um grande teatro.
Victor Mendonça: E a plateia/sociedade nos observando o tempo todo.
Raquel Romano: Exatamente. Por que não sermos grandes atores, vivendo nesse grande teatro?
Acessibilidades para uma explosão sensorial no autismo e o Transtorno do Processamento Sensorial (TPS) são…
Sophia Mendonça e o Budismo: “Buda é aquele que consegue suportar” e mesmo o inferno…
Crítica de cinema sem lacração, Sophia Mendonça lança newsletter no Substack. De volta às raízes,…
Conto infantil é metáfora para o autismo? Youtuber e escritora Sophia Mendonça lança contação de…
Nunca Fui Beijada é bom? Drew Barrymore é a alma cintilante de clássico das comédias…
Pensamento lógico e o autismo. O que isso significa? Tenho considerado o peso da ponderação…