Selma Sueli Silva
Nessa época complicada, o Mundo Autista conversou com duas grandes advogadas para que você saiba quais são os direitos da família e das pessoas que precisam de cuidados diferenciados para a manutenção da boa saúde em tempos de pandemia.
As entrevistadas
A advogada de Belo Horizonte Betânia Oliveira de Andrade é nossa entrevistada de Belo Horizonte. Ela própria apresenta uma doença neuromuscular crônica (Miastenia Gravis), considerada uma doença rara e uma deficiência física não aparente. O diagnóstico veio há 14 anos, mas, antes disso, Betânia passou pela falta de acessibilidade, dificuldade de diagnóstico, negativa de medicamentos junto ao SUS ou ao Plano de Saúde. Vivenciar essas situações é o que a fez se especializar nesse campo do Direito, na tentativa de minimizar o sofrimento de quem passa por situações semelhantes.
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Já a Adriana Monteiro é advogada há 20 anos e mora em Brasília. Há 19 anos, Adriana teve uma filha com uma síndrome rara, a síndrome de Angelman (uma condição causada por uma mutação genética que leva principalmente a problemas neurológicos), associada ao autismo. Foi então que, há 15 anos, passou a trabalhar na área da deficiência, por perceber, na prática, a dificuldade de acessar direitos para a filha. Adriana é mãe também do João Arthur, de 16 anos, que apresenta transtorno do processamento auditivo, TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade) e altas habilidades.
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Invisibilidade em época de pandemia
A ONU fez alerta sobre o abandono das pessoas com deficiência, mas Betânia concorda parcialmente com isso. Ela orienta que é preciso analisar o todo e buscar soluções. “Estamos vivendo um momento atípico, em que as situações irão se adequando de acordo com as demandas”.
No entanto, Betânia concorda que, num primeiro momento, “os governantes não pensaram nas pessoas com deficiência que precisam de cuidadores para suas atividades cotidianas, como se alimentar, tomar banho e todas as demais atividades básicas”. Para essas pessoas, não há como colocar em prática medidas de contenção, como distanciamento social e isolamento pessoal, podendo, inclusive, comprometer a sobrevivência.
Nos primeiros dias, por exemplo, o fechamento de várias divisas intermunicipais para transporte coletivo, onde o passageiro poderia passar apenas se comprovasse seu vínculo empregatício em outra cidade, por meio do crachá, contracheque e afins, trouxe alguns transtornos. Era permitida a passagem, apenas pessoas que trabalhassem formalmente nas atividades consideradas essenciais, como saúde e alimentação. Acontece que geralmente os cuidadores são empregados informais e não têm documentação que comprove o vínculo empregatício exigido para a transposição de munícipios. Dias depois, a questão foi regulamentada pela Presidência da República, proibindo o bloqueio aos municípios.
Betânia chama a atenção para o fato de que na maioria dos meios de comunicação há falta de acessibilidade para transmitir as informações relacionadas ao COVID-19 às pessoas com deficiência.
Já para Adriana, o alerta até demorou, já que as pessoas com deficiência apresentam várias outras condições que as colocam em uma situação mais vulnerável que a maioria da população. A advogada lembra que no início das campanhas sobre o coronavírus não se falou sobre a acessibilidade dessa campanha. E esse fato foi reflexo da realidade que nos cerca, não existem jornais em libra, a maioria dos sites não é acessível; portanto, a informação para as pessoas com deficiência chega sempre de forma tardia. É aí que reside esse abandono das pessoas com deficiência.
Além disso, quando os países estavam preparando os protocolos de enfretamento da pandemia, também não houve a preocupação de incluir as pessoas com deficiência, o que só aconteceu há alguns dias, aqui no Brasil. Essa invisibilidade que vivenciamos cotidianamente de políticas públicas para as pessoas com deficiência, não só no Brasil, como em outros países, reflete num momento como esse que o abandono é quase inevitável. Adriana pondera que “cabe a nós pleitearmos e lutarmos para que esse abandono não aconteça”.
Quais são os direitos neste momento?
Betânia Andrade orienta que “a princípio, deve-se tentar resolver extrajudicialmente qualquer questão que viole o direito das pessoas com deficiência.” Ela explica que “não há nenhuma legislação específica sobre a temática de abandono da pessoa com deficiência em tempos de pandemia”.
Mas a advogada também ressalta que “cada situação deve ser analisada de acordo com o caso concreto e, caso necessário, há várias leis (Constituição Federal, Lei Brasileira de Inclusão, Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência) que garantem o direito à vida, à saúde, a dignidade da pessoa humana e outros”.
É importante saber que no caso de esses direitos serem violados, deve-se procurar a Defensoria Pública ou um advogado especialista na área a fim de que sejam resguardados e/ou restabelecidos o direito da pessoa com deficiência, lembra Betânia Andrade.
A advogada de Brasília, Adriana, lembra que a única orientação até agora é a Nota Informativa 28/2020, do último dia 20 de março, direcionada para a Rede de Atenção às Pessoas com Deficiência. Mas ressalta que não sabe quando essa Nota vai chegar às mãos de toda a Rede, sendo necessário que as pessoas se mantenham atentas. A lei já resguarda as pessoas com deficiência para atendimentos prioritários, resguarda no sentido de não haver discriminação (que é crime). Discriminação, de acordo com a Lei Brasileira de Inclusão – LBI – é tudo aquilo que impede a pessoa com deficiência de concorrer em igualdade de condições com os demais. Portanto, se ela chega a uma rede de atendimento de saúde e ela não tem acessibilidade nesse lugar, se ela não tem os meios de ser internada, a forma correta de ser atendida… Tudo isso é discriminação. Nesse caso, a pessoa pode procurar a delegacia ou, ainda melhor, ligar para a polícia e registrar um Boletim de Ocorrência. Pode ainda procurar os órgãos de proteção como os Conselhos, o próprio Ministério Público e a Defensoria Pública. Mais uma vez: Discriminação é crime, de acordo com a Lei Brasileira de Inclusão, artigo 88.
“A gente sempre pensa em discriminação como uma ação que se coloca contra. Como xingamentos, recusas explícitas, mas a simples falta de acessibilidade já é uma forma de discriminação”. Adriana Monteiro
A política de Saúde Pública
“Se analisarmos um contexto social geral, nos deparamos diariamente com negligências no que tange a política de saúde pública da pessoa com deficiência”, é o que pensa a Betânia Andrade. Ela esclarece que num momento como esse, de pandemia, a negligência tende a se agravar, já que tem demandado uma atenção e dedicação quase que integral da saúde pública para os pacientes infectados.
Dessa forma, é natural que em consequência desse aumento de demanda, superlotação dos hospitais e centros de saúde, demoras nos atendimentos e a falta de recursos atinjam a todos, inclusive a pessoa com deficiência. Entretanto, Betânia enfatiza: “mas é exatamente por isso, que o momento exige maior responsabilidade com essa população por causa da discriminação estrutural que enfrentam. É fundamental estabelecer protocolos para emergências de saúde pública para garantir que pessoas com deficiência não sejam discriminadas no acesso à saúde”.
Como situações novas exigem novos métodos, Betânia lembra que “as campanhas de informação pública e as informações fornecidas pelas autoridades nacionais de saúde devem estar disponíveis em língua de sinais, formas, meios e formatos acessíveis, incluindo tecnologia digital, legendas, serviços de retransmissão, mensagens de texto, leitura fácil e linguagem simples”.
Para Adriana, advogada que mora em Brasília, falar sobre políticas públicas começa por falar em “não-pessoa”. O que se considera pessoa? O senso comum se comove muito com as crianças, as mulheres, os idosos, mas até determinado momento. A advogada explica que em determinada circunstância “cada um desses grupos é visto como não-pessoa. A criança não pode dar uma opinião mais incisiva porque, nesse momento, é vista como não pessoa. Existem até os grupos childfree que não gostam de crianças. A pessoa idosa também é vista como não-pessoa na sexualidade, na decisão de quero ou não quero; os filhos começam a querer mandar depois de uma vida inteira tendo recebido acolhimento e muitas vezes desrespeitam as vontades dessas pessoas. Assim como as mulheres são discriminadas ao longo da história. Mas as pessoas com deficiência sofrem uma discriminação que é quase linear, sem intervalo. O que se percebe é que há um momento em que a criança, a mulher, o idosos são bem quistos. A criança é o xodó da família, o idoso é o sábio, a mulher é a força do lar, todos esses estereótipos. Em torno da pessoa com deficiência isso não existe. Ela é invalidada para o trabalho, para a educação, ela é um problema para a saúde, ela é um problema em todas as áreas. Então, por que a pessoa com deficiência é negligenciada na política de saúde? Porque ela é negligenciada em todas as políticas públicas, pois não é vista como pessoa, digna de direitos na sua totalidade”.
Escalas de negligência da pessoa com deficiência na Saúde Pública
Adriana Monteiro explica que são várias escalas de negligência, desde maquinário acessível para o atendimento, médicos com conhecimentos sobre a deficiência, falta de recursos humanos especializados. Como exemplo, Adriana cita a mulher surda que vai ter um parto: “ela precisa chegar ao local, ela precisa que alguém traduza que ela está com aquelas dores, muitas vezes elas são oprimidas dentro das salas de parto”. São várias as questões em que as pessoas com deficiência são recorrentemente colocadas de lado na hora da construção de uma política pública.
A principal questão é o preconceito de encarar aquela pessoa como uma pessoa menor, menos válida, uma pessoa menos importante. Esse é o fundamento de toda a exclusão da pessoa com deficiência.
Terapias essenciais para as PCDs em tempos de quarentena
Betânia cita o decreto Nº 10.282, DE 20 DE MARÇO DE 2020, e afirma que as que “as terapias essenciais para PCDs são indispensáveis e devem ser mantidas, uma vez tratar-se de atendimento das necessidades inadiáveis da pessoa, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência e a saúde”.
Mas a advogada destaca “que alguns casos devem ser conversados com os profissionais da saúde que atendem a pessoa com deficiência e, caso não haja risco de comprometimento da sobrevivência ou da saúde da pessoa com deficiência, talvez vejam que o mais viável e seguro no momento é a suspensão temporária ou a redução de determinadas terapias, a fim de expor menos a pessoa com deficiência ao risco de infecção do COVID-19.”
Importante ressaltar que no caso do serviço de home care prestado para pessoas com deficiências mais graves, tanto o Sistema Único de Saúde quanto as operadoras de Planos de Saúde não podem suspender o tratamento.
Adriana Monteiro explica que as terapias estão garantidas em lei. Mas se essas terapias trouxerem risco de morte para essas pessoas, aí entra o bom senso para ver o que é mais importante.
O momento atual é muito diferente de tudo que se viveu até aqui. O contato da PCD com alguém infectado pode resultar na morte da pessoa com deficiência, por problemas respiratórios, cardíacos ou pelo simples fato de ser internada em uma unidade de saúde sem ter a acessibilidade de que ela precisa. São muitas variáveis e as famílias têm que pesar isso tudo, para verificar o que é, de fato, essencial. E o essencial é aquilo que garante a vida. Não é o desenvolvimento, uma fala melhor, o desenvolvimento de uma comunicação alternativa. Adriana explica que “nós estamos num momento de sobrevida. O que essa criança precisa para a sobrevida, o que é indispensável? É isso que deve ser feito”.
Atendimento preferencial prioritário e os grupos de risco
Betânia lembra que em situações consideradas normais, a pessoa com deficiência tem atendimento preferencial tanto nos hospitais como em qualquer outro local, conforme determina o artigo 9º da Lei Brasileira de Inclusão. Mas ela lembra também que em uma situação atípica o que prevalece é o bom senso.
O grupo de risco inclui pessoas idosas (acima de 60 anos), pessoas com baixa imunidade, pessoas com doenças crônicas e outras. As pessoas com deficiência não foram incluídas no grupo de risco. Exceto aquelas que tenham alguma patologia atrelada à deficiência, que resultam em insuficiência e/ou dificuldade respiratória e pessoas com condições genéticas ou neurológicas crônicas. Mas nem toda pessoa com deficiência estará no grupo de risco.
Adriana se lembra da “ficha de cadastro” da emergência que é bem diferente da prioridade comum do atendimento. Se você for a uma clínica com horário marcado, com possibilidade de sua prioridade não prejudicar o outro, ela é válida. Na emergência, a regra é outra: eles olham quem está correndo risco de morte. Os prontos-socorros têm a pulseira de prioridade. A vermelha é que é a mais urgente. Eles têm várias formas de encaixar a pessoa no atendimento. O atendimento preferencial vale para obter a senha. Já o atendimento em si vai depender da gravidade do caso, risco de morte.
E para tomar vacina? Poderia ser solicitado que fosse aplicada em casa?
Betânia explica que o direito a vacinação é assegurado a todas pessoas com deficiência, nos termos do artigo 18, §4º, IV da Lei Brasileira de Inclusão. Mas, no caso da vacinação da gripe, não há nenhuma previsão legal de que se estabeleça o direito da pessoa com deficiência tomar a vacina em casa.
As secretarias municipais de Saúde estão adotando estratégias de vacinação, como dias específicos para determinados grupos, vacinação feita dentro do próprio veículo ou até mesmo na casa da pessoa considerada do grupo de risco. Portanto, a pessoa com deficiência deve verificar em seu munícipio qual medida está sendo tomada e se há alguma orientação específica para esse grupo social. Já para as pessoas com deficiência que estão acamadas, a vacinação será no domicílio da pessoa.
Adriana lembra que o CONADE, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, fez o pedido para que o governo dê atendimento preferencial também para as pessoas com deficiência, assim como os idosos.
O que exigir do cuidador externo neste momento
Betânia lembra que os cuidadores, externos ou de casa, devem tomar todas as precauções e medidas de higienização indicadas para o combate à disseminação do COVID-19. E completa: “Principalmente quando cuidarem de pessoas com deficiência que apresentem alguma patologia que os faça estar dentro do grupo de risco. É necessária a limpeza dos equipamentos de uso pessoal das pessoas com deficiência, como cadeira de rodas, muletas e andadores. Deve-se usar máscara caso tenham tido contato com casos suspeitos e, se apresentarem sintomas de gripe, evitar contato”.
Se for viável, pode-se optar para que algum familiar faça as atividades do cuidador durante esse período de isolamento social, para evitar cuidadores que dependam de transporte público. Além de o cuidador estar exposto ao risco, ele também vai expor a pessoa com deficiência e sua família a esse risco.
Já Adriana chama a atenção para deixar a pessoa com deficiência apenas com seu núcleo familiar para diminuir os riscos corridos. Se não puder evitar, vale, além das máscaras, usar o Propé, aquela sapatilha descartável, higienizar aparelhos de fisioterapia, por dentro e por fora no caso daqueles aparelhos que são usados para estimular a abertura do pulmão, além daquelas já citadas.
Recadinho das entrevistadas para as famílias.
“Nesse momento é preciso ter muita calma, paciência e a solidariedade de todos. O país (e o mundo) está vivendo um momento conturbado e triste. Devemos contribuir com a saúde pública e seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde, ficando em casa e fazendo a higienização correta. Mas não é momento de pânico. Precisamos manter nossa saúde mental e termos consciência de que essa fase passará. Ademais, há muitas fake news sendo divulgadas. Por isso, é importante nos certificarmos das informações antes de repassá-las”. Betânia Andrade
“Mães e pais: façam a sua parte com muita seriedade, se comprometam em manter a saúde de suas crianças e a saúde de vocês também. Comprometam-se com a limpeza e os cuidados que a gente já faz. Procurem manter a serenidade, a alegria dentro de casa. Mantenham a dignidade, a mente ocupada com coisas boas como contar histórias para as crianças, fazer atividades domésticas com auxílio delas, para que essa imunidade não baixe. A tristeza o desanimo, tudo isso baixa nossa imunidade. Essa alegria que é muito difícil nesse momento, numa hora tão complicada, mas vamos manter a alegria, serenidade e a confiança em dias melhores”. Adriana Monteiro
*Betânia Oliveira de Andrade, advogada, pós-graduada em Direito Médico e da Saúde, especialista em Direito Médico e da Saúde, pós-graduanda em Inclusão e Direitos da Pessoa com Deficiência e pós-graduanda em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária, com foco em benefícios para pessoas com deficiência e decorrentes de problemas de saúde. Ela é palestrante e membro da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB/MG.
*Adriana Monteiro, advogada em Direito de Família e nos direitos da pessoa com deficiência, co-fundadora da Associação Síndrome do Amor, em Ribeirão Preto (SP), da qual é membro do Conselho, participou do Movimento Orgulho Autista, do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Opas Brasil – Organização Pan Americana da Saúde e foi Secretaria Executiva do Conselho da Pessoa com Deficiência do Distrito Federal
Confira nota do Ministério da Saúde citada no texto
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