Neste mês da visibilidade trans, resolvi compilar minhas 10 revelações pessoais em livro sobre autismo e transexualidade, o Metamorfoses (2023). O desejo de reunir esses trechos da obra em um único artigo veio porque muitas pessoas me perguntam sobre aspectos íntimos da minha transição social. E Metamorfoses é fruto da minha dissertação, na qual estudei a interseccionalidade entre autismo e transgeneridade. Afinal, temos estudos robustos que indicam uma maior prevalência de diversidade de gênero na população autista.
Então, como no livro eu amarro a pesquisa sobre autismo e transexualidade com algumas vivências desde a infância até a minha cirurgia de redesignação social, sempre respondo que é lá que deixei registrada minha contibuição sobre o assunto. É que, infelizmente, ainda difícil falar sobre essas questões. Porém, compreendo a importância de compartilhar experiẽncias como um meio de fornecer uma visão mais prática sobre como é ser uma autista trans. Dessa forma, trouxe algumas dessas revelações pessoais em livro sobre autismo e transexualidade para serem consultadas neste artigo, como uma maneira de responder a essas perguntas. Vamos lá, então:
Eu tinha 14 anos quando ocorreu a minha primeira crise de taquicardia. Estava a caminho da psicóloga, como era comum em todas as semanas. Eu gostava de ir àquela profissional empática e assertiva. Isso ocorria mbora meus colegas de escola verbalizassem que era estranho ter uma psicóloga. Eles diziam que isso era “coisa de doido”, perspectiva com a qual nun ca compactuei. Dessa vez, porém, a angústia havia toma do conta de mim.
Minha mãe, que dirigia o carro, havia me estimulado a falar, pela primeira vez, com alguém da área da saúde, sobre o fato de, como eu afirmava à época, me sentir uma mulher presa em corpo de homem. A psicóloga me disse que deveria ser mais difícil, para mim, comunicar aquilo do que era para ela ouvir, no que tange à sensação de desconforto. A isso se seguiu a primeira pergunta: se eu já havia sentido atração pelo mesmo sexo.
A crença vinda de outras pessoas de que eu era um homem gay me perseguia desde a primeira infância. Minha mãe relata que, ainda na pré- escola, quando eu estava com cinco anos de idade, uma psicóloga que acompanhava as crianças lhe deu um telefonema para discutir sobre a minha “homossexualidade”. Em diversos momentos em que argumentei com alguém que a minha questão não se limitava à atração sexual e nem es tava diretamente ligada a ela, essa angústia foi ignorada.
No início da fase adulta, até tentei aceitar o rótulo de “homem gay” por parecer socialmente mais leve do que a noção de mulher trans, mas aquilo não me dizia quem eu era. O que talvez pudesse ser enxergado como uma forma de libertar minha feminilidade apenas deixou claro mais um universo masculino ao qual eu não pertencia.
Desde pequena, minha identificação com o fe minino era intensa. Era assim que eu me via, como eu me sentia, na forma de agir, de me expressar e de perce ber o mundo. Quando criança, tinha os interesses considerados “de menina”. Além disso, manifestava atitudes como colocar uma toalha na cabeça para simular um cabelo grande ou usar perucas com a mesma finalidade. Também tentava usar absorventes na genitália, pintar as unhas, vestir camisolas e calçar os sapatos de minha mãe.
Em 2020, anunciei publicamente minha transição social. Não aguentava mais viver desempenhando um personagem pessoal e publicamente, sem a possibilidade de me expressar como eu legitimamente me percebia. Assim, fiz uma postagem no Facebook e no Instagram, na qual fui muito bem recebida pelos seguidores. Então, falei como eu me sentia lutando contra a minha verdadeira identidade desde muito pequena. Lá, eu reportei oiní cio do processo da transição.
Mas, infelizmente, a postagem viralizou. Com isso, ela chegou até a pessoas que não conheciam meu trabalho. Uma série de comentários discriminató rios surgiu. Tanto em relação à transfobia quanto a visões preconceituosas sobre autismo, transtornos mentais e de ficiência em geral. Então, ponderei e resolvi apagá-la. Porém, segui abordando a transição como figura pública, mesmo que de forma cada vez mais discreta.
Apesar de eu ter a tendência ao hiperfoco e já ter manifestado, várias vezes, curiosidade ao ver uma pessoa transgênero em aparições midiáticas, sempre direcionei a maior parte de minha atenção ao universo culturalmente constituído como “feminino”. O que me atraía nas figuras que desafiavam a noção binária de gênero era a possibilidade de migrar socialmente para a maneira como eu me percebia individualmente: uma mulher. Não havia, portanto, identificação minha com figuras trans. Essa ligação era essencialmente com a feminilidade.
Dessa forma, sinto-me contemplada com o relato da ativista transgênero Bianca Leigh no documentário Revelação: Eu, como criança nos anos 60, não sabia o que era ser trans. (…) Quando via filmes e séries de TV, eu me identificava com a heroína. Quan do você é uma criança queer nos subúrbios, está louca por glamour e assistindo a Vestida para Matar você não vê a misoginia, só vê a beleza em movimento e suspense. E tem uma sequência em que a Angie Dickinson está com uma roupa toda creme, com as luvas beges e está esplêndida. (…) Ela entra no elevador e, de repente, está o Michael Caine, em uma peruca barata, de óculos escuros e sobretudo, e a mata. Olhamos agora e pensamos: “Abominável!”. Mas, quando eu era criança, pensava: “Sou a Angie Dickison
”.Com relação ao amparo familiar, as pessoas do núcleo mais próximo, mesmo que receosas com a pos sibilidade de violência em um primeiro momento, ra pidamente se tornaram grandes parceiras no meu pro cesso de transição. Minha mãe argumenta que, quando a família é a primeira a discriminar uma pessoa trans, é como se ela desse um “passe livre” para outros setores da sociedade fazerem o mesmo.
familiares mais distantes não viam assim. Chegaram a argumentar que eu não tinha o direito de “fazer isso” com minha mãe e avó, pois elas ficariam com medo por causa de uma “decisão” minha.
O ambiente de interação em mídias sociais, por nem sempre se manifestar acolhedor, pode apresentar riscos relacionados, por exemplo, à exposição de aspectos mais íntimos da vida pessoal do indivíduo. Foi assim com o meu primeiro namoro, uma relação totalmente à distância e assexual, antes de eu iniciar a transição, por se tratar de um relacionamento não (cis) heteronormativo e com uma pessoa mais jovem.
A exposição pública da relação deixou a família do rapaz desconfortável, devido à publicização da sexualidade. As postagens foram feitas por nós mesmos, em função de nossa felicidade de estarmos juntos. Acredito que, embora ele seja um grande amigo hoje, que me apoia na transição, este foi um dos motivos que levou ao rápido término da nossa vivência como casal.
Eu mesma já fui perseguida em mídias sociais, por uma palestrante autista que afirmava que o trabalho meu e de minha mãe banalizava e espetacularizava o autismo, dentre outras acusações mais graves. A frequência com a qual ela entrava em contato com seguidores e publicava postagens maliciosas foi aponta- do como o fator central para eu ter voltado a desenvolver episódios de autoagressão aos 20 anos.
Cheguei a ir para um hospital com overdose de medicamentos após ler uma dessas postagens e ouvir um áudio enviado a uma seguidora. Tomei aqueles remédios não porque quisesse morrer, mas aquela situação estava tão delicada de lidar que eu buscava uma “fuga”. Tive diagnóstico de estresse pós-traumático. Por alguns anos, a minha terapia foi fo-cada em resolver as sequelas dessa situação.
Eu tinha muito receio de me expor até para os profissionais que me acompanhavam. Quando foi ver balizada a questão da transgeneridade, aos 14 anos, o que senti deles foi uma tentativa ainda maior de me ensinar a esconder gestos e emoções que poderiam ser vistos como “femininos”. O argumento utilizado era de que isso evitaria o bullying ou o assédio.
Assim, eu recebia orientações de profissionais diferentes para falar sobre futebol (um tema considerado culturalmente “masculino”), apesar de não manifestar nenhum inte resse pelo assunto, e para “sinalizar” gestualmente de maneira mais masculinizada. Sentia-me transformada em uma espécie de personagem em que não importava o que eu era de fato; mas, sim, como as pessoas iriam me perceber.
Os impactos da camuflagem social começaram a surgir com mais ênfase em minha trajetória, mas eu não via sentido em ter que mudar o meu jeito de ser apenas para ser aceita. Queria ser vista como uma vida singular e respeitada por isso.
Quando mais jovem, era sempre muito difícil dosar o que deveria ou não ser publicado, o que talvez fosse íntimo ou ainda não estava suficientemente amadurecido para ser compartilhado. Em alguns momentos nos quais a minha avaliação sobre isso não se revelou tão apurada, sofri retaliações que me afetaram a trajetória pessoal e profissional, inclusive fora do ambiente digital.
Depois de um acontecimento traumático específico, pas sei a avaliar ainda melhor as minhas publicações: certa vez, publiquei o comentário de um psiquiatra favorável a determinado posicionamento, ligado a um projeto do Mundo Autista, nas mídias sociais. Ele me chamou a seu consultório e alertou das críticas que estava recebendo por essa posição e propôs uma mudança significativa no conteúdo do trabalho.
Eu e minha mãe o dispensamos da produção, mas tivemos crises muito intensas de choro logo após essa situação, porque isso envolvia um aspecto pessoal da nossa trajetória. Hoje, tenho uma reticência em publicar reflexões que envolvam outras pessoas.
Sophia Mendonça é uma jornalista, escritora e pesquisadora brasileira. É mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+
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