A literatura de testemunho quando se encontra em território poético costuma ser mais lúdica do que as abordagens sobre tragédias reais em grandes eventos que costumam aparecer em estudos sobre o tema. Porém, esse tipo de literatura também é importante para evidenciar tragédias cotidianas. Estas são socialmente naturalizadas e enraizadas, como a violência a grupos marginalizados. Essa reflexão sobre dor e trauma pode ser feita de maneiras diversas. Isso inclui um senso de humor ácido. Assim, o poema pode ser uma maneira incômoda não de solucionar as causas da dor. Mas, de buscar compreendê-la melhor.
No Brasil, uma das expoentes dessa poética é a escritora mineira Conceição Evaristo. Que é uma mulher preta nascida em 29 de novembro de 1946. Ela cresceu em uma comunidade belo-horizontina e conciliou o estudo com o trabalho de doméstica até os vinte e cinco anos. Isso foi quando conseguiu concluir o ensino básico. Então, mudou-se para o Rio de Janeiro. Lá, tornou-se Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Já nos anos 1980, ela estreou como escritora e passou a redigir produções tanto em prosa quanto em poesia. E em 2008, ela publicou o livro “Poemas de recordação e outros movimentos”, em que consta o poema “Vozes-mulheres”.
Assim, em meio a essa trajetória, o Dia da Consciência Negra foi instituído, em 2003, com o objetivo de dar visibilidade à violência da escravidão e reconhecer a negritude como parte crucial da história que fundou a sociedade brasileira. Assim, Conceição Evaristo construiu sua obra com foco na própria identidade de uma mulher negra. No poema citado, ela tece uma sequência de gerações com suas lutas e aspirações. Este trabalho evidencia-se uma obra de valor estético e cunho social.
Em entrevista ao jornal Estado de Minas, Conceição Evaristo contou que o poema foi originalmente escrito no final dos anos 1980 e publicado no “Cadernos Negros 13” na década seguinte, inspirado na interação com as mulheres em seu entorno. Essas mulheres, muitas delas parentes da escritora, contavam histórias de escravidão dos africanos e sempre se dedicavam ao trabalho subalternizado. Foram poucas as que conseguiram sair de tal lugar pré-determinado pelo contexto histórico.
Nesse sentido, vale conceituar a noção de necropolítica. Para o filósofo Vladimir Safatle, essa ideia se refere à preservação pelo Estado de interesses de determinadas classes, enquanto age de maneira predatória com outras delas. Esse fenômeno é mais explícito em territórios marcados pela centralidade de experiências coloniais e separa os sujeitos entre “pessoas” que têm os direitos reconhecidos junto ao Estado, e “coisas” destinadas à morte sem culpa. Tal morte, aliás, é vista apenas como um número, sem que haja uma narrativa humanizada sobre ela. Para o autor, a necropolítica se difere do “estado suicidário”, um termo criado por Paul Virilio para definir o que ocorre quando o Estado, além de atuar violentamente contra grupos específicos, também é o agente que cultiva a própria destruição.
Em Vozes-Mulheres, Conceição Evaristo traz um olhar para essas questões. Afinal, o poema evidencia os ecos que ainda existem da sociedade escravocrata. Essa abordagem pode ser percebida pelas personagens femininas, que surgem como sinédoques. Com isso, elas aparecem como parte de um todo significativo para a construção do país. Assim, a autora dá voz a mulheres que representam um coletivo feminino subjugado pelo patriarcado.
Nesse sentido, a personagem da bisavó representa os pretos africanos trazidos ao Brasil como mercadoria. Esse mesmo estigma de servidão aos “brancos-donos de tudo” aparece na representação da avó. Porém, no caso da mãe, há uma ideia de resistência, ainda que em uma vivência marginalizada. Por fim, a filha “recolhe todas as vozes”. Ou seja, foram necessárias vozes de muitas gerações para que houvesse uma possibilidade de escuta.
Vozes-Mulheres
Conceição Evaristo
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(In: Poemas de recordação e outros movimentos, 3.ed., p. 24-25)
Sophia Mendonça é jornalista e escritora. Também, atua como youtuber do canal “Mundo Autista” desde 2015. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Assim, em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Já em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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