Hoje, Dia do Médico, me trouxe a reflexão da visão autista sobre a arte de cuidar de vidas. Como a pessoa autista precisa de segurança, previsibilidade, paciência, do olhar para as diferenças, não era qualquer médico que me conquistava. Cresci ouvindo que eu era doida, que a gente é que se adapta ao médico, desde que ele seja competente, e não o contrário.
É evidente que eu ouvia isso de pessoas típicas. A lógica para a pessoa atípica costuma ser outra, pois parte de uma premissa diferente: a pessoa que está à minha frente, precisa me entender. Tive a boa sorte de encontrar profissionais assim, vida a fora. Entretanto, encontrei outros tantos que traziam consigo a certeza de que faziam parte de uma categoria superior da humanidade: humanos que resguardam a vida de outros humanos. Bobagem, pura! De imediato, me vem à cabeça a música, “quando a gente ama é claro que a gente cuida.” O médico não precisa gostar de todos os seus pacientes. Mas ele tem de amar gente!
Na primeira vez que fui ao SUS (antes INAMPS), eu fui sozinha, aos 15 anos, me consultar com um clínico geral. Havia umas 20 pessoas, além de mim, esperando por ele. As pessoas iam entrando uma após outra. Nenhuma paciente era atendida com menos de 15 minutos, como acontecia ao lado, nos outros consultórios. Eu já me perguntava se estava aguardando o médico certo, por que não era chamada se chegara muito antes de meu horário e coisas assim.
A conversa ao redor, os cheiros, o trança trança, tudo isso foi me fazendo mal. Comecei a suar frio, estava com forte enjoo, tive a sensação de desmaio iminente. Uma senhora de uns 40 anos ao meu lado (hoje eu a consideraria uma moça) perguntou se eu estava bem. Não respondi pois considerei a pergunta estranha já que era visível que eu estava mal. Ela pegou minha mão e o desconforto foi imediato. Então disse: O que você está sentindo: Respondi, num sussurro, com os olhos baixos: “Tudo! Não sei explicar.” Puxei minha mão. Ela continuou: “Fique calma o dr. Jardim já vai atender você. Ele é conhecido c omo dr. das consultas demoradas. E
você será a próxima”Fiz um esforço, olhei para a mulher e perguntei, “como a senhora sabe?” E ela: “Porque sou a próxima e vou deixar você entrar antes de mim.” Nem bem fechou a boca, ela foi chamada. Eu, que já estava no auge do mal estar e da agonia, comecei a chorar copiosamente. A enfermeira me guiou até o médico. Ele me olhou e assim que dei uma respirada, ele perguntou, “onde está doendo? O que te trouxe aqui.” Ainda entre um soluço e outro eu disse que já não me lembrava, que tudo doía, que estava enjoada, que parecia que eu ia desmaiar e que ele demora uma infinidade para atender. Por isso, seja lá o que eu tivesse, eu piorei e muito.
Foi quando o dr. Jardim me olhou com um olhar que eu nunca mais me esqueci. Era um olhar que me aqueceu e me fez bem, se é que isso era possível. Afinal, olhar não aquece. Eu não entendia, ainda, que isso era possível sim. Então, o dr. Jardim começou a me explicar, como quem conta um caso: “Olha, Selma. Se você estivesse num sacolão, querendo escolher umas batatas para comprar, e as pessoas que estivessem na sua frente, demorassem muito para escolher as delas, eu penso que aí sim, seria muito demorado.
Mas aqui, eu lido com pessoas. Pessoas que não estão bem. Eu preciso ouvi-las, pesquisar algumas questões e, por fim, examiná-las. Tudo isso, eu tenho de deixar anotado, para que de uma próxima vez, o atendimento não seja tão demorado. Acontece que sempre há novas pessoas chegando. Atender gente é assim. Eu sei que há médicos que atendem pessoas como quem examinassem batatas. Eu não sou assim.”
Respirei fundo, já me sentindo mais calma e segura. E disse: “Sim, agora eu entendo perfeitamente.” Ele sorriu e eu emendei: “Só queria que a enfermeira tivesse me explicado isso lá fora. Tudo bem, agora já sei a regra. Preciso pensar então, numa forma de me proteger. Aliás, toda a espera por médicos, me faz muito mal. Mesmo quando estou com minha mãe. Cheguei a pensar que era alérgica a médico, quando era mais nova.
Lembro, até hoje, da sonora gargalhada que o Dr. soltou. Mas fato é que, até hoje, os melhores médicos para mim e minha filha, são aqueles que não se desviam da humanidade na relação médico paciente. Fazem do humanismo, mesmo em contato constante com doença e morte, sua maior credencial. Focam, pois, na saúde, na integridade do ser humano a sua frente. Assim, a arte de cuidar de vidas flui naturalmente. Minha admiração e meu carinho a todos vocês, neste dia dos verdadeiros médicos!
Selma Sueli Silva é criadora de conteúdo e empreendedora no projeto multimídia Mundo Autista D&I, escritora e radialista. Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial (IEC/MG), ela atua como editora no site O Mundo Autista (Portal UAI) e é articulista na Revista Autismo (Canal Autismo). Em 2019, recebeu o prêmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+. Prêmio Microinfluenciadores Digitais 2023, na categoria PcD. É membro da UNESCOSOST movimento de sustentabilidade Criativa, desde 2022.
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