Autismo e Família

Victor Mendonça: a nova fase da vida e a construção de um novo olhar

Camila Marques

Jornalista, escritor, apresentador e autista, Victor Mendonça fala sobre os novos desafios na pesquisa de Mestrado, junto à UFMG, sobre gênero, mulher autista, deficiência e teledramaturgia.

A vida acadêmica requer e envolve disposição e entrega. Envolve processos, pois pesquisar, além de se dispor a estudar sobre algo, é também se permitir a descobrir outros caminhos. Vivemos em um momento em que a ciência, mais do que nunca, está sendo decisiva. Em contrapartida, desde 2015, os repasses para investimento em pesquisa no Brasil têm sofrido queda. No início de 2019, o governo contingenciou 30% da verba para pesquisa nas universidades federais. Tanto para as áreas humanas quanto para as biológicas e as exatas, a pesquisa é essencial.

Por isso, essa semana, decidimos conversar com o Victor sobre esta nova fase da sua vida: o mestrado. O Victor se abriu com a gente, falando sobre o processo seletivo, a reconsideração de escolhas e o porquê de uma temporada de “Malhação” ser o seu objeto de pesquisa. Acompanhe.

Victor, sua pesquisa está dentro da área de textualidades midiáticas. O processo seletivo do mestrado na UFMG é considerado um dos mais fechados. Qual foi o maior desafio ao “vender o seu peixe” para a banca?

O principal desafio de passar por esse processo foi um exercício de humildade. Quando falamos em pesquisa, não existem certezas a princípio; eu estou apenas no começo de uma jornada para desvendar processos extremamente complexos que envolvem meios de comunicação e a textualidade (lembrando que a vida e o agir humanos também podem ser interpretados como textos).

Tive que fazer e refazer várias vezes o meu plano de estudos, tentando colocar o ineditismo do tema como algo que contasse a favor do projeto, em vez de soar como uma colcha de retalhos por juntar várias informações que ainda não são debatidas na área acadêmica de Comunicação Social. Tudo que eu tinha em mente precisava estar bem organizado e amarrado para não haver mal entendidos.

Em compensação, eu realmente acredito na relevância do tema que pesquiso e em como essa pesquisa é inovadora e pode levar a benefícios concretos e visíveis para a sociedade, a médio e longo prazo, tanto do ponto de vista midiático quanto para a população em geral. Então, quando estava sendo entrevistado pela banca, é claro que estava com o coração na garganta (afinal, o nervosismo é algo natural em um processo tão importante e formal), mas eu tinha muita convicção e clareza do que queria expressar. Ninguém conhece o meu projeto como eu, são anos de esforço e dedicação até chegar nele, então pude me expressar naturalmente, quase como se estivesse contando um caso para a banca. Lógico que vieram várias perguntas dos examinadores que me provocaram a buscar um novo olhar sobre aquele projeto que havia desenhado com tanto cuidado. Considerando as notas de todo o processo seletivo, eu fiquei em segundo lugar geral, contando com os alunos de ações afirmativas e ampla concorrência.

Seu objeto de pesquisa é a temporada de “Malhação – viva a diferença”, agora prestes a entrar em reprise na TV Globo. Na trama, a personagem Benê (Daphne Bozaski) tinha o diagnóstico do autismo. Gostaria de saber como você vê o retrato da mulher autista na TV, lembrando que a novela “Amor à Vida”, de 2013, também trazia a história de uma personagem autista. O que você viu ali que despertou para a pesquisa?

Trabalho com pesquisa afetiva, ou seja, não há distanciamento da realidade sobre a qual estou pesquisando; ao contrário, de alguma forma, estou inserido neste contexto. Então, a ideia desta pesquisa veio de um recorte bem pessoal que partiu para uma experiência mais ampla. Em 2016, aos 53 anos de idade, minha mãe recebeu o laudo de autista e afirmou que se sentia como se tivessem roubado a identidade dela por toda uma vida, até que ela finalmente tivesse acesso ao diagnóstico. Realmente, existem vários dados que apontam que o subdiagnóstico das mulheres com autismo leve é preocupante, alarmante.

*Especialistas apontam que, como o comportamento da mulher para com a sociedade é treinado (o fato das meninas brincarem de boneca, por exemplo), mulheres tendem a camuflar o comportamento autista. Por isso, o Victor fala em subdiagnóstico. No livro “Minha vida de trás para frente”, Selma Sueli Silva relata como foi o processo do diagnóstico…

Quando acompanhei a novela pela primeira vez, percebi algo similar com a Benê, a personagem autista e adolescente interpretada por Daphne Bozaski. Ela só fica sabendo do próprio autismo em cenas próximas ao final da novela, ou seja, é um diagnóstico tardio, assim como costuma acontecer com a esmagadora maioria de mulheres autistas. Antes disso, porém, seus comportamentos chamaram a atenção do público, que não sabia do diagnóstico, como inadequados, estranhos e outros rótulos menos lisonjeiros, dados por meio de redes sociais.

Esses julgamentos fazem parte dos muitos desafios de quem cresce e vive sem diagnóstico. Isso é agravado no caso das mulheres, que não costumam corresponder aos estereótipos ligados ao autismo por causa da diferente forma de manifestação das características no sexo feminino e são mais cobradas, como as mulheres em geral, para apresentarem maior adequação social. Pela minha experiência, sei que muitas mulheres que ouviram impropérios de supostos “especialistas” em função disso antes de acharem o profissional que entendesse das nuances do autismo.

Como comunicador, fiquei me perguntando que tipo de impacto a abordagem do autismo no feminino em novelas como essa pode causar na autopercepção e na imagem de um grupo já marginalizado e subdiagnosticado. Afinal, os autores televisivos são afetados pela realidade

, de modo a espelhá-la em suas obras, para devolver a necessidade de reflexão à sociedade? Embora a gente compreenda que a relação entre público e mídia não é passiva, sabemos, por meio de vários autores, que uma novela, por exemplo, é um gesto comunicacional em que se revelam exercícios de poder, os quais podem estão abertos a promoverem hierarquias e desigualdades. A novela, então, se revela um excelente meio para compreender relações sociais e comportamentais bastante complexas. Pretendo, dessa forma, enxergar possíveis gargalos que retardam a inclusão de mulheres autistas na sociedade, nas universidades, em seus lares e no mercado de trabalho.

Com relação à telenovela “Amor à vida”, é outro tipo de abordagem da mulher autista, com uma personagem que apresenta particularidades distintas. Mas não descarto a possibilidade de as duas, Benê (“Malhação) e Linda (“Amor à Vida”), “conversarem” em dado momento da minha pesquisa. Por agora, o que podemos afirmar como certo é que este é um projeto que dialoga com deficiência, mulher autista, gênero e teledramaturgia.

As falas autistas na TV são estereotipadas?

Embora seja difícil representar um espectro tão amplo e diverso como o autismo, eu não percebo um esforço da maioria dos realizadores, principalmente nos Estados Unidos, de fugir do estereótipo do homem branco, com jeito robótico, esquisito e dificuldades no flerte. Atualmente, temos pelo menos dois exemplos fortes sobre isso na televisão estadunidense: as séries “The Good Doctor” e “Atypical”. Mesmo em outras produções que retratam mulheres autistas, muitas vezes se vê uma repetição desse papel, ignorando as especificidades do autismo no feminino, como a camuflagem social, e retratando o comportamento das mulheres autistas como similar ao dos homens autistas.

Uma curiosidade minha: por que, normalmente, só vemos autistas homens?

Como a maioria das mulheres autistas apresenta manifestações mais sutis da condição, podendo apresentar inclusive bons mecanismos de cópia e habilidade social, o subdiagnóstico neste grupo ainda é gritante. A última pesquisa em metanálise sobre a diferença quantitativa entre homens e mulheres no espectro é de 2017 e sugere uma proporção de três homens para cada mulher, mas muitos profissionais ainda trabalham com dados mais antigos e ultrapassados, nos quais a diferença é muito mais gritante. Só agora estamos abrindo os olhos para as particularidades do autismo na mulher e há pesquisadores que defendem que essa discrepância seja ainda menor. Por causa de todo o histórico de invisibilidade do autismo no feminino, ainda há um imaginário popular de que praticamente só há homens autistas e que o autismo na mulher é algo raro, o que, comprovadamente, não é verdade.

Sabemos que a rotina acadêmica requer muito estudo e entrega. O que mudou na sua rotina após o mestrado?

Tudo, basicamente. Mesmo em tempos de home office, tudo o que eu faço agora gira em torno do mestrado, em analisar o meu projeto, em fazer atividades para o estágio docente, ler muitos livros e artigos e pesquisar bastante. Além disso, eu e minha orientadora, Sônia Pessoa, estamos trabalhando em projetos de artigos. Sou bolsista da Fapemig, então essa entrega deve ser ainda maior, sendo, inclusive, vedado a mim o vínculo com qualquer empresa durante o processo do Mestrado e é obrigatório que o meu desempenho seja de excelência. Então, todos os meus dias estão focados na vida acadêmica e preencho meus horários vagos com críticas de cinema (que é a disciplina da graduação da qual sou monitor, como estagiário docente) e na produção de textos para o MUNDO AUTISTA, agora com um olhar mais maduro de pesquisador e comunicador.

Em outras ocasiões, você me contou que, por conta do autismo, o seu processo de organização é um pouco mais metódico, para que não se sinta perdido durante a realização das tarefas. O que o espectro influencia na sua rotina como mestrando?

Por um lado, é vantajoso por causa do hiperfoco nos assuntos propostos, o que me permite mergulhar e aprender facilmente aspectos complexos. Por outro, estou aprendendo estratégias para lidar com a minha disfunção executiva e poder organizar melhor o meu dia, tendo um passo a passo bem planejado, para evitar ansiedade e desgaste.

Como você se sente e o que espera com a vida acadêmica?

Eu sempre fui muito curioso e ávido por conhecimento, principalmente nas áreas de mídia e Comunicação Social. Sempre quis entender como esses processos intrincados funcionam e agora sinto a oportunidade deixar o pesquisador que existe em mim desde a infância desabrochar e poder contribuir positivamente com a sociedade por meio disso. Quero seguir uma carreira acadêmica com leveza e seriedade.

Mundo Autista

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