Não tem jeito. Uma vez autista e distraída, sempre rotulada. Há 2 dias, completei 59 anos. e, claro, já aprendi a perceber muitas coisas que antes não conseguia. Consigo perceber várias metáforas também. Já com piadas, não sou tão boa. Exceto se for algo em que o óbvio é que dita o tom do humor. Quando, aliado ao TEA – Transtorno do Espectro Autista, trazemos o TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, aí … danou-se.
Aliás, a sociedade tem uma queda para o fatalismo. Quando se trata de algo que as pessoas não entendem então. A pior hipótese é a que tende a prevalecer. No autismo, a explicação veio rápida: o autista vive em seu mundo particular. Claro que não é bem assim. Se, de alguma forma, o autista se recolhe e encolhe, é porque não há o interesse da maioria das pessoas na interação conduzida por sua forma singular de se expressar. O que complica muito mais quando a pessoa autista é não oralizada.
No caso do TDAH, acredito que foi assim que aconteceu quando ‘sua excelência’ comunidade científica batizou o TDAH de déficit de atenção. Como assim, déficit? Se o assunto interessa, a pessoa pode até ter nele o seu hiperfoco. Da mesma forma que o autista.
O que pega é que algumas coisas nos interessam e outras não. E, certamente, não nos interessa prestar atenção em algo que nos seja desinteressante. Sendo assim, ficamos inquietos. E como nossa inquietação só parece incomodar a nós mesmos, agimos com impulsividade para sair desse xeque-mate.
Aí, o cérebro autista nos cobra: mas a regra é essa. Dessa maneira, iniciamos um conflito interno sobre o que eu quero fazer e o que as regras nos impõe. Agora me expliquem: como podemos manter o bom humor vivendo esse conflito diariamente, a cada instante?
Durante a minha vida de autista distraída e, portanto, rotulada, criei uma enormidade de estratégias. Eu precisei tornar o meu entorno o mais previsível que eu conseguisse. Desse modo, desde os 9/10 anos, escrevo meu diário, para tentar entender a dinâmica da vida. Além disso, era o meu desabafo, o que podia evitar que eu ‘perdesse a paciência’ como minha família vivia me cobrando. À medida que eu crescia, me tornei a rainha das listas. Assim, eu anotava tudo o que considerava importante. (Ponto para meu lado autista). Mas me esquecia de checá-las. (Ponto para meu lado TDAH). Nunca desisti. Faço isso até hoje, me adequando às novidades criadas, como por exemplo planners ou aplicativos.
Enquanto escrevia esse texto, Sophia me chama eufórica para ver algo. Chego ao quarto dela e ela acompanha a live do SELOPPGCOM/UFMG: ‘Diálogos’, com os professores doutores Sônia Pessoa e Carlos Mendonça, com mediação do professor doutor Juarez Guimarães Dias.
Foi o que bastou, me detive ali, ouvindo sobre como é a perspectiva afetiva de pesquisa científica, desenvolvida no Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Vulnerabilidades. Desde que minha menina se tornou mestre com um trabalho desenvolvido no âmbito deste grupo, intitulado “A Interseccionalidade entre Autismo e Transgeneridade: diálogos afetivos no Twitter“, ou mesmo no livro escrito por nós duas: “Diversos Diálogos, Autismo(s), meios e mediações” eu agradecia internamente essa humanização que essa dimensão de pesquisa permitia à pesquisa acadêmica.
Afinal, uma pesquisa que considera igualmente as possibilidades do pesquisador e do pesquisado, das narrativas inerentes a essa relação e ao contexto vivido por ambos, essa pesquisa adquire mais valor ao contemplar também o humanismo e nossas humanidades.
Ouvindo ao fundo a voz doce e competente da orientadora de minha garota, penso em dias melhores para as pessoas com deficiência. Afinal, uma caixa padrão é muito pequena para comportar toda a grandeza dos seres humanos. Amém!
Selma Sueli Silva é graduada em Jornalismo e Relações Públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, além de Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial. Atuou, como produtora e apresentadora, nas rádios Itatiaia (de 2001 a 2015), Inconfidência, Autêntica Educativa e Super. Foi assessora chefe do INSS/MG, de 1993 a 2001. É autora de cinco livros. Foi diagnosticada com TEA (Transtorno do Espectro Autista) em 2016. Mantém o site “O Mundo Autista” no Portal UAI e o canal do YouTube “Mundo Autista” desde 2015.
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