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Um presente chamado Sophia.

Selma Sueli Silva

Este ano foi desafiador para todos nós. Para mim não foi diferente. Rompimento de meu contrato de trabalho com a Rádio, medo da Covid, convivência de dois autistas, mãe e filho, em casa, home office para o Mundo Autista – site, redes sociais, lançamento de livro, lives, além de cursos ministrados nas áreas do humanismo e da comunicação não violenta. Portanto, muito trabalho em casa e de casa. Apesar do medo, das perdas e baixas vindas da pandemia, eu mantive minha energia vital com muita produtividade, fé e, sobretudo, esperança. Mas a partir de fins de setembro, tudo em minha vida, iria mudar ainda mais…

Meu filho, com diagnóstico de autismo desde os 11 anos, apresentava também, um quadro de disforia de gênero – uma identificação forte e persistente com o gênero oposto associada a ansiedade, depressão, irritabilidade e o desejo de viver como pessoa do gênero feminino. Se há algo que aprendi nesse fascinante mundo do autismo é que sabemos muito pouco e, por isso, eu não iria julgar, discriminar, descabelar por causa de um assunto sobre o qual eu nada entendia. Fiz como sempre faço e me debrucei sobre o estudo do tema e procurei profissionais da área médica. Mas, infelizmente, nossos ‘doutores’ não tem formação em muitas áreas do funcionamento do cérebro. Assim, essa minha busca com os profissionais foi frustrante e acabou por retardar um processo que deveria ter acontecido de forma mais leve desde a pré-adolescência. Se faltaram informações e conhecimentos, sobraram julgamentos e achismos.

Diante disso tudo, Victor se fechou e seguiu com algumas crises e sofrimento que atingiram o ápice durante essa pandemia. Como humanistas que somos, eu e ela, nós nos dedicamos nesse período de pandemia, a trabalhar nosso corpo e mente para sairmos melhores que entramos da fase de distanciamento social. Não deu outra: Victor se revelou Sophia e eu me descobri mãe de menina. Nova maratona. Dessa vez, fomos acompanhados por profissionais competentes nessa área de conhecimento, o que trouxe segurança e leveza à minha família. Bem, melhor dizer, trouxe segurança e leveza ao nosso núcleo familiar. Eu e Sophia, Sophia e eu.

Muitas pessoas me questionaram sobre minha aceitação imediata. Pobres almas aflitas! Como assim, aceitação? A mim, como mãe, compete acolher e proteger, sem passar a mão na cabeça, claro. Qualquer coisa fora disso, seria sentimento meu que deveria ser resolvido comigo mesma. Assim, adotei um método que sempre utilizo, como mãe autista. Fiz uma listinha que me orientasse para eu não me dispersar em meio ao processo de transição social de minha filha, Sophia Silva de Mendonça, com carteira de identidade e tudo mais:

  1. Qual era o meu maior medo? Eram dois. Que minha filha estivesse enganada e se arrependesse mais tarde. Solução: Entender que ela é adulta, mestranda, escritora, senhora de suas escolhas e que se isso acontecesse, faria parte do processo de aprendizado e tiraria dela um sofrimento que vinha desde a tenra infância. O outro medo era do julgamento transfóbico da sociedade em um país extremamente polarizado e extremista. Solução: Como não posso mudar a sociedade diretamente , iria redobrar esforços para manter minha filha como um valor humano que ela é e que, a cada dia, ela se tornasse a melhor versão de si mesma. Afinal, o ser humano admirado pela família, pelos amigos, pelo meio acadêmico e seguidores era o mesmo de sempre, com a mesma essência humanista.
  2. Nunca foi fácil para nós duas, essa exposição como autista. Por que continuar então? Nós já perdemos as contas de famílias e pessoas que conseguimos ajudar, de alguma forma. É imperativo cumprir o nosso juramento de jornalistas: levar informações confiáveis à sociedade, partindo da premissa de que mais informação e conhecimento resultam em menos preconceito e capacitismo.
  3. O mesmo raciocínio funciona para a questão de pessoas trans. Se não houver quem leve à sociedade suas vivências e descobertas embasadas na ciência, a sociedade vai continuar confundido gênero, afetividade e sexualidade. O gênero é estabelecido por nosso cérebro, a afetividade por nossos sentimentos (coração) e a sexualidade pela genitália. Fomos ensinados a associar homossexualidade e transsexualidade com promiscuidade e aberração. Gente, o sexo acontece entre quatro paredes, exatamente porque obedece a códigos que interessam aos dois principais envolvidos. Se formos ouvir depoimentos de casais héteros, vamos ficar atônitos também, porque sexo não é para ser narrado e sim para ser vivido. Dessa forma, quando não aceitamos pessoas com outros gêneros, estamos empurrando essas pessoas para a marginalidade que culmina em prostituição e assassinatos de vidas humanas e valores para a sociedade. https://papodehomem.com.br/o-que-e-transexualidade-identidade-de-genero/
  4. Estudos realizados nos últimos 6 anos apontam que existe 8 vezes mais chances de pessoas autistas expressarem a disforia de gênero do que acontece com as pessoas típicas.
  5. Eu compreendo que algumas pessoas possam não entender essa situação. Elas não tem que ser obrigadas a aceitar ou não aceitar, mas devem, sim, respeitar. Não devemos abrir espaço para o ódio e a grosseria. A sociedade precisa de bons seres humanos, e se preocupar ou jogar o foco em questões da sexualidade e de gênero das pessoas só nos desvia do que realmente importa.
  6. O código de ética é para ser humano e isso não muda de acordo com o gênero da pessoa.
  7. Eu eduquei minha filha para se dizer ao mundo e ser um valor para ele e a sociedade. Portanto, eu não posso criticar a coragem de Sophia.
  8. Não é que seja fácil, mas minha escolha é me abrir para outras possibilidades, sem me achar melhor (ou pior) do que ninguém. Eu escolho vibrar na frequência do amor que, durante toda a minha vida, me levou a diminuir o risco de falhar no caminho para a construção de uma sociedade mais justa, humanizada e inclusiva.

Por fim, é como diz o maior pacifista vivo da atualidade, dr. Daisaku Ikeda: “Este tipo de empatia aberta nos capacita a considerar a diversidade humana como uma catalisadora para a criatividade, a base de uma civilização de inclusão e prosperidade mútua.

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