Victor Mendonça e Tiago Abreu
Você, provavelmente, já deve ter ouvido falar em neurodiversidade. Mas sabe o que é isso? E você sabe o que isso representa para a comunidade do autismo, especialmente no Brasil? É o que abordamos nesta primeira grande reportagem da parceria entre o podcast “Introvertendo” e o portal “O Mundo Autista”.
Os autistas cresceram e, aqui no Brasil, várias vozes se levantaram. São pessoas que estudam, questionam, participam, mas, que acima de tudo, conhecem o autismo pelo lado de dentro. Nesta reportagem, traçamos o histórico e apresentamos as correntes que envolvem o tema.
História
Em 1993, um homem chamado Jim Sinclair, fundador de uma associação intitulada Autism Network International, se dirigiu a um público de pais, durante conferência sobre autismo em Toronto, e se identificou como uma pessoa com autismo. Mais tarde, Sinclair publicou um ensaio on-line baseado nessa conferência, com críticas ao movimento dos pais. O ensaio ficou conhecido como a declaração “Não chorem por nós”.
“Autismo é um jeito de ser. Não é possível separar a pessoa do Autismo. Por conseguinte, quando os pais dizem “Gostaria que meu filho não tivesse Autismo”, o que eles realmente estão dizendo é: “Gostaria que meu filho autista não existisse, e eu tivesse uma criança diferente em seu lugar”. Leia isso novamente. É o que ouvimos quando vocês lamentam por nossa existência. É o que percebemos quando vocês nos falam de suas mais tenras esperanças e sonhos para nós: que seu maior desejo é que, um dia, nós deixemos de ser, e os estranhos que vocês possam amar vão surgir detrás de nós”, disse Jim Sinclair.
A Autism Network International era a primeira associação de autismo organizada por autistas nos Estados Unidos. Antes disso, historicamente, o ativismo do autismo era exercido apenas por pais, ou por figuras como Temple Grandin. Mas ainda não é aí que surge o termo “neurodiversidade”. Aliás, é importante diferenciar “neurodiversidade” e “movimento pela neurodiversidade”. Apesar de serem expressões parecidas, não se trata da mesma coisa. O “movimento pela neurodiversidade” é um termo diretamente ligado à maior parte dos ativistas autistas, enquanto o termo “neurodiversidade” se estrutura, teoricamente, por uma socióloga chamada Judy Singer, no final dos anos 90. E, obviamente, o conceito ganhou espaço dentro da comunidade e se tornou referência para todo aquele ativismo. Se já é um pouco difícil de entender a princípio, no cenário da época era mais confuso ainda.
A partir da década de 1960 e até o final da década de 1990, o ativismo pelo autismo foi uma missão exercida por mães e pais. Contudo, em 1993, Sinclair argumentava que a imagem do autismo projetada pelo movimento dos pais, em geral, era permeada pela tristeza e considerava que o autismo era algo errado na vida dos filhos. Isso ganharia um novo capítulo em 1998, quando o médico Andrew Wakefield publicou um artigo desastroso que relacionava a vacina de MMR com o autismo. Era o ápice de uma relação conturbada com as origens do autismo e a visão melancólica de muitos pais acerca do transtorno. Na década de 1990, várias organizações “pró-cura”, com slogans como “Derrote o Autismo Já”, eram o mote de críticas de autistas como Sinclair. E, na década de 2000, monopolizando a pesquisa de tratamentos acerca do autismo, surgia a organização Autism Speaks, com afirmações como “Essa doença arrebatou os nossos filhos. É tempo de recuperá-los”.
O conceito de neurodiversidade e o próprio movimento tinham uma visão bastante diferente daquela dos pais “pró-cura”. Para a neurodiversidade, esse cérebro diferente é um acontecimento biológico esperado. Essa filosofia considera que “ser autista” é apenas mais uma maneira de ser do ser humano. Sinclair criou um site para ampliar a discussão sobre o autismo, mas não conseguiu popularizar o ponto de vista da neurodiversidade, porque os participantes desse grupo tendiam a hostilizar os visitantes que não se identificassem como autistas. Essas pessoas eram chamadas de “neurotípicos” para designar os que não eram autistas ou neurodiversos. Quando, nos anos 2000, o movimento antivacina chegou a incomodar o Estado e a Autism Speaks demorou a se posicionar contra, com medo dos pais, um jovem autista chamado Ari Ne’eman fundou a Autistic Self-Advocacy Network. Ele tomou emprestado o lema das campanhas dos direitos das pessoas com deficiência da década de 1990, o “Nada sobre nós sem nós”. A entidade queria garantir que a voz dos autistas fosse ouvida nos debates sobre políticas e nos corredores do poder. E quando autistas e pais se encontraram na corrida pelas políticas públicas, as tensões ganharam novas formas.
Apesar disso, o movimento pela neurodiversidade continuou a ganhar adeptos e impactou diretamente à forma pela qual vemos o autismo hoje. O grupo de trabalho e os editores do DSM-5 (o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que contou com a participação de autistas em sua elaboração, aprovaram o Transtorno do Espectro Autista, a definição nova e abrangente de autismo, que entrou em vigor em maio de 2013. A Síndrome de Asperger passou a integrar o espectro como autismo leve, embora, nas palavras de Francesca Happé, integrante do grupo de trabalho, tivesse feito uma contribuição valiosa enquanto durou. Ela escreveu que o Transtorno de Asperger prestou uma contribuição ao revelar que algumas pessoas no espectro do autismo têm QI elevado e boa linguagem.
Em 2015, o livro “Neurotribes: The Legacy of Autism and the Future of Neurodiversity”, do jornalista Steve Silberman, foi a primeira obra a abordar a história do autismo. O livro foi um sucesso e a abordagem pró-neurodiversidade de Silberman deu nova popularidade ao movimento. No início do ano seguinte, o livro “In a Different Key” (“Outra Sintonia”, na versão brasileira), também sobre a história do autismo, foi lançado com críticas ao movimento da neurodiversidade.
As disputas são abrangentes em todo tipo de mídia e de ativismo. Afinal, a discussão sobre como vemos o autismo não envolve apenas uma questão filosófica. Os recursos do Estado são escassos e a vida das pessoas, obviamente, encurta a cada segundo. Assim, você precisa fazer escolhas. Investir o seu esforço para a busca de tratamentos que vão mudar radicalmente realidades em longo prazo, como uma espécie de “cura”, ou investir toda essa energia para tornar a vida das pessoas melhor aqui e agora? É uma discussão muito difícil. E é por isso que tanto os movimentos pela cura quanto os pela neurodiversidade conflitam entre si.
Além disso, você já deve ter ouvido autistas falarem que não querem ser chamados de anjos azuis e que o azul não os representa como cor. Também já deve ter ouvido de pais que autistas adultos vão atrapalhar o desenvolvimento de seus filhos proibindo terapias. Não é difícil encontrar críticas ao movimento pela neurodiversidade e, aqui, vamos citar as cinco críticas mais comuns.
Apesar de todas as críticas, a neurodiversidade ganhou a comunidade do autismo de forma que, em 2020, elementos do movimento estão por toda a parte. Em fevereiro deste ano, a polêmica Autism Speaks anunciou uma nova identidade visual com várias cores, e chegou a atender à reivindicação de autistas para usar a expressão “pessoas autistas” em vez de “pessoas com autismo”.
Os Autistas
Tanto o movimento quanto o conceito de neurodiversidade surgiram nos Estados Unidos ainda na década de 1990, mas, aqui no Brasil tudo isso apareceu de forma bem mais tardia. Como a popularização do autismo, o acesso ao diagnóstico e até a internet aqui se deu também muito mais tardia; esse movimento só começou a fazer barulho há menos de dez anos.
2016 foi o ano divisor de águas para o ativismo dos autistas ligados à temática da neurodiversidade. Em Fortaleza (CE), ocorreu o Encontro Brasileiro de Pessoas Autistas, o primeiro evento do país organizado por autistas e com palestrantes autistas. De lá para cá, surgiram outras iniciativas do gênero.
William de Jesus Silva, vulgo William JS, tem 26 anos, é paulista e membro da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo, a Abraça. Muito antes de fazer parte do ativismo do autismo, em 2013, William apareceu no programa “Balanço Geral”. O motivo era o seu hiperfoco em política. Em junho de 2019, ele esteve em Brasília, na Câmara dos Deputados, no Dia do Orgulho Autista.
Para William, a experiência foi surreal e, ao mesmo tempo, foi uma honra. “Eu senti que estava avançando na minha missão. Foi ali que eu tirei o diploma, definitivamente, de liderança política autista”, afirma. E completa: “Não só eu, mas os outros companheiros que compuseram a mesa comigo, incluindo a nossa presidenta Fernanda Santana, do Paraná.” Segundo William JS, a entidade preconiza a convenção da ONU e busca levar a sério o comentário geral número sete da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência. Para ele, os autistas têm que começar a entrar nos partidos políticos e disputar espaço. William considera mais do que urgente a formação de uma bancada autista em cada parlamento, seja a Câmara Municipal, sejam as assembleias legislativas ou a Câmara Legislativa do Distrito Federal, seja no Congresso Nacional. Ele faz esse trabalho há cinco anos, desde que entrou para PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). “A gente tem que começar a ocupar os partidos, os movimentos sociais, a sociedade, amigos de bairro, enfim, a gente tem que estar presente em todos os espaços de poder e de decisão”.
William é enfático ao dizer que os pais críticos ao movimento pela neurodiversidade não querem perder palanque. O ativista observa que, normalmente, “autistas adultos são sinceros, não deixam nada atravessado”. Muitas vezes esses pais interpretam tais comportamentos como grosseria, falta de educação ou até como um discurso violento, o que, segundo ele, não é verdade. William afirma que “eles tratam como polêmica uma simples disputa de narrativa que deveria ser considerado algo natural para uma democracia, na qual há confronto de ideias”. Ele sente que o Brasil ainda está imaturo nessa questão porque muitos acabam levando a discussão para um lado pessoal, sem saber separar uma coisa da outra.
Para o militante, existem também casos de autistas que são manipulados ou traidores do movimento, os quais preferem ficar em uma posição passiva, sem querer sair da zona de conforto tomada pelo discurso “neuronormativo” e acham mais fácil ficar criticando a luta dos outros, caluniando e ofendendo ativistas.
William é crítico do estereótipo do anjo azul. E dispara: “Eles acham que o autista tem que calar a boca e deixar o neurotípico falar por ele. A gente tem que quebrar esse ciclo. Está se tornando um círculo vicioso que pode ser perigoso e é maléfico para a comunidade autista. E pior: vai acabar se tornando carta branca para que haja conivência com violações de direitos humanos, principalmente com relação a mulheres autistas que já são subjugadas. Isso prejudica porque constrói a ideia de que o autista é uma criança eterna que jamais vai crescer; reproduzir, desenvolver vida própria. Isso é bobagem! Sabe, são várias coisas que a gente tem que desconstruir. Principalmente aqui no Brasil, em que a coisa ainda tá engatinhando”.
A autista Alice Casimiro, autora do blog “A Menina Neurodiversa”, concorda com William. Para ela, há neurotípicos que gostam de invalidar o que os autistas dizem quando estão cobrando os próprios direitos, manifestando suas visões políticas sobre a questão da neurodiversidade. O argumento utilizado por esses críticos ao movimento é o que autista “leve” não tem muita consciência sobre como é ser um autista severo. Ela considera este ponto bem controverso porque os neurotípicos, segundo a blogueira, sequer sabem como é a vivência de um autista “leve” e que, portanto, pessoas com esse diagnóstico compreendem muito melhor acerca da condição. Ela observa que “existe essa questão de não querer que a gente se posicione. Eu não sei o porquê de as pessoas tomarem essas atitudes, essa insistência para que a gente fique sempre nesse lado pacífico; que a gente seja sempre o incapaz, sempre um bebê no corpo de um adulto. E não: a gente pode falar. A gente pode se posicionar. Tem pessoas lutando por nós”.
Alice pontua que a terapia ABA é recente no Brasil. “Lá fora já tinha muito tempo e os autistas que estão nos grupos internacionais, muitos deles diagnosticados cedo, foram submetidos a ela e hoje eles desenvolveram um trauma por causa disso. Quando você mencionar essa terapia, você tem que pôr um aviso de gatilho porque pode engatilhar uma crise na pessoa. Eu ainda ouço umas histórias estranhas sobre essa terapia dos dias de hoje, vindas de lá. Então faz muito mais sentido lá esse posicionamento mais radical do que aqui. Por isso, muitas pessoas aqui às vezes veem dessa forma: ‘Nossa, é muito radical!”.
Na crítica de alguns autistas, a ABA seria um adestramento de cachorro para pessoas com essa condição. Ainda assim, esta visão não é unanimidade para os ativistas neurodivergentes. A autista Kmylla Borges, que tem um canal no YouTube chamado “Desordem do Espectro”, apoia o movimento da neurodiversidade e tem pós-graduação em Análise do Comportamento Aplicada e autismo. “Sinceramente, não sei por que isso ocorre em relação à ABA e toda essa estrutura que é baseada em evidências. Não sei por que há certa resistência e muitos pensamentos de que a criança fica robotizada, fica mecânica. Eu acho que é uma forma bastante estruturada e objetiva de analisar cada caso de forma individual. Eu, honestamente, não sei por que se criou essa questão”, afirma a youtuber.
Para ela, as críticas dos pais ao movimento ocorrem por conta da diferença do grau em que o filho se encontra no Espectro, definido pelo nível de dependência. “Também não é uma questão de negligenciar e falar que o grau mais leve não precisa de atenção, não precisa de terapias e intervenções, mas, pela dificuldade da comunicação no grau severo, os pais se comunicam por eles e, talvez por não entenderem o que eles realmente querem, veem mais a necessidade das terapias. E aí, entra em choque a questão de uma ‘cura’ e o outro lado, o que está mais visando uma questão de respeito e inclusão”, pondera Kmylla.
Não é só necessariamente com pais que ativistas da neurodiversidade têm alguns conflitos. Algumas figuras públicas também são fortemente criticadas por seus posicionamentos e declarações públicas. O William, por exemplo, chegou a escrever vários textos em seu blog “Desenhista das Ruas”, criticando o biólogo Alysson Muotri, que é um dos pesquisadores em autismo mais famosos do Brasil, ex-colunista do G1 e presença constante na televisão. Para William, a tensão entre Muotri e os ativistas não vem de hoje. Ele relembra que, em 2016, o pesquisador se envolveu em uma discussão no Facebook com autistas adultos.
À época, de acordo com William, “Muotri tinha feito um concurso de artes plásticas e chamou autistas para participarem, prometendo prêmios, inclusive tenho alguns amigos que têm prints dos prêmios e das cobranças desses autistas vencedores. Aí ele ‘enrolou’ essas pessoas e ainda disse que nós somos uma ‘minoria vocal chatíssima”. William aponta que foi por essa expressão que o biólogo perdeu o respeito com a maior parte dos autistas adultos.
Para o ativista, o direito de imagem do autista sobre si é outra questão que deve ser discutida urgentemente e, em seus textos, já fez duras críticas a Muotri. “Eu digo que ele é picareta porque usa principalmente a imagem do filho dele. Eu estava assistindo a matéria do ‘Fantástico’ e achei ridícula a forma como ele expôs o filho dele. Fascista porque ele tem umas ideias completamente conservadoras sobre o autismo. Eugenista porque esse negócio da reconstrução de cérebros é porque ele quer achar uma suposta cura para o autismo e não há cura. O autismo não é doença, é uma condição neurológica diversa de funcionamento cerebral que pode variar de acordo com os níveis de necessidades sensoriais da pessoa. Ele quer fazer um projeto, na verdade, para evitar que novos seres neurodiversos nasçam na Terra. Aí ele se vale da questão dos autistas severos para pregar um projeto eugenista e higienista. Isso para mim também é uma forma de higienismo social. É por isso que eu tenho não só essas opiniões, mas essas confirmações sobre ele”.
Polêmicos ou não, os autistas pela neurodiversidade se dizem satisfeitos por pertencerem ao movimento. Kmylla, desde criança, se percebia diferente e muito inadequada. “Eu não conseguia fazer parte de grupos e é muito diferente fazer parte sendo autista e apenas trabalhando de forma profissional, quando não sabia que era autista”.
Para Alice Casimiro, saber que existe um movimento que luta pelos direitos de pessoas como ela faz sentir que ela vale a pena, “que existe uma luta em prol dos nossos direitos, que não é uma besteira algumas coisas que eu pensava que me incomodava. É uma manifestação de muitas pessoas que também sempre passam por coisas parecidas. Então me sentir parte de um grupo, não só um grupo de autistas que querem um mundo melhor para os autistas querem um mundo mais inclusivo, com uma visão mais positiva. E não para ver o autismo como uma benção, um superpoder, nova forma de evolução. Não, mas para ver como algo natural, assim é ser neurotípico, ser autista. São variações da existência humana”.
“Por mais que tentem nos derrubar, a gente tem que seguir e continuar lutando até alcançar a vitória”, afirma William JS.
Doutora Raquel Del Monde
Em 2013, o cantor Dinho Ouro Preto virou piada quando twittou a seguinte mensagem: “Falta uma banda que una todas as tribos como foi o Norvana”. Todas as tribos são também divididas na comunidade do autismo. Absolutamente nenhuma figura pública é unanimidade. Contudo, se há alguém que está muito perto de ser o “Norvana” da comunidade do autismo, é a neuropsiquiatra Raquel Del Monde.
Raquel é diretora do Núcleo Conexão, grupo multidisciplinar de avaliação e intervenção em transtorno de aprendizagem, desenvolvimento e autismo. Também é mentora da Comunidade Reinventando a Educação. O trabalho dela ganhou projeção nacional ainda maior após uma famosa entrevista para o programa “Conversa com Bial”. Mãe de um autista de 21 anos, ela diz que aprendeu quase tudo que sabe sobre a condição dentro de casa e percebeu o autismo de vários parentes que não foram diagnosticados, alguns já falecidos.
Foi a partir do momento em que essa questão entrou na vida dela que Raquel se aprofundou no assunto, o que gerou uma grande identificação com autistas e familiares. Para a médica, é uma relação de muito carinho e troca. “Eu aprendo todos os dias e é tão legal quando às vezes eu estou numa consulta, a pessoa começa a me contar alguma coisa e eu sei do que ela está falando com muita profundidade. Eu tenho hoje em dia grandes amigos autistas que fui conhecendo ao longo da minha trajetória e até mesmo pacientes com quem eu tenho essa troca super rica, que é muito legal, e acho que faz bem para todos nós.”
Raquel enxerga a heterogeneidade como marca registrada da natureza humana, tanto no sentido biológico quanto neurológico. No entanto, para a médica, essa pluralidade ainda não é reconhecida na forma como a sociedade se organiza. Ela vê o ativismo dos autistas como algo fundamental para valorizar a diversidade e tornar as estruturas sociais mais preparadas para acolher a todos, autistas ou não. Raquel defende que a homogeneidade não existe em nenhum nível e que devemos celebrar tudo o que todos têm a oferecer, por meio das características únicas de cada pessoa. Ela também contou a percepção que tem sobre as críticas ao movimento pela neurodiversidade, inclusive de pais de crianças com autismo severo e limitações muito grandes. “Eu vejo que é a frustração deles é que assume o comando dessa fala. Porque a gente entende que os cuidadores dessas crianças às vezes estão tão sobrecarregados com as suas dificuldades, com o impacto que cuidar daquelas crianças pode ter provocado nas suas vidas profissionais e conjugais. Então, a frustração é tão grande e pode envolver uma série de questões que eles estejam vivendo, como a dificuldade no acesso à terapia, uma escola decente, a um serviço que abrace aquela criança”.
Para a neuropsiquiatra, é daí que surge o rancor do movimento pela neurodiversidade, como se ele fosse só pura e simplesmente: “Vamos aceitar que é bom ser diferente”. Raquel defende que o movimento da neurodiversidade não é só sobre ser bom ou ser ruim ser diferente e sim pelo reconhecimento da nossa diversidade, pela aceitação e pela busca de apoios adequados. Para ela, falta esse entendimento e de que muitos dos suportes que hoje desenvolvidos para as crianças graves só puderam ser ocorrer porque foram conhecidos por meio dos autistas que puderam expressar para os profissionais. As questões sensoriais, por exemplo, foram reconhecidas como critérios diagnósticos a partir do DSM-V de 2013, segundo ela, já percebido por todos que lidavam com autismo antes disso. A psiquiatra salienta que hoje sabemos da importância enorme desses fatores, inclusive para questões comportamentais e desregulação dos autistas, por causa daqueles que conseguem se expressar verbalmente terem elaborado melhor essa dificuldade. “Muitas vezes não há esse reconhecimento de que muitos dos progressos que nós tivemos nos últimos anos no desenvolvimento de abordagens terapêuticas mais eficazes foram graças, justamente, ao fato de os autistas estarem usando a sua voz pra nos contar como é realmente estar dentro de uma condição que impõe essas limitações.”
Também existe uma crítica recorrente ao fenômeno, que ocorre especialmente na internet, de pessoas que se “autodiagnosticam” com autismo. Um dos pontos da discussão é o sistema psiquiátrico brasileiro, que, na avaliação de muitas pessoas, é inacessível à renda de grande parte da população. Raquel lembra de outros fatores a serem considerados nessa discussão. Para ela, existe essa busca por um diagnóstico, não apenas pela falta de acessibilidade, mas em muitos casos pela falta de conhecimento dos próprios profissionais. “Parece que houve uma estagnação da formação. A gente vê que, mesmo com esse conhecimento muito grande que temos acumulado hoje em dia, os ambientes de informação ainda acabam propagando aquela visão muito antiga do autismo de Kanner, de quadros muito graves. É uma dificuldade muito grande em interpretar os critérios diagnósticos de uma forma mais ampla, mais aprofundada. Mesmo as pós-graduações muitas vezes são insuficientes.”
Doutora Raquel relata que chegam a ela, em primeira mão, discussões em ambientes de formação que ainda ficam naquele esquema de: “Não, essa pessoa fala muito bem. Olha só, essa criança chega, abraça, beija, é muito carinhosa, não pode ser autista”. “Há a questão também de que antigamente se falava em 70% de deficiência intelectual nas pessoas autistas e, por incrível que pareça, isso ainda é replicado nos ambientes de formação. Então, se esses profissionais se deparam com alguém inteligente, bem sucedido, inclusive em alguma área, é quase como se isso fosse um fator de exclusão por si só.”
Raquel Del Monde considera que essa falta de formação profissional acaba desanimando muita gente a procurar um diagnóstico profissional. “Até porque às vezes essas pessoas já passaram por avaliações profissionais, se iludiram muito com isso, buscaram informações na Internet, que para a vida delas e a compreensão das próprias dificuldades foram muito mais valiosos do que as avaliações profissionais. Então a pessoa acaba realmente desmotivando dia após dia.”
Raquel concorda que o acesso no sentido de que é um serviço caro também existe para uma grande parcela da população e observa que uma avaliação psiquiátrica é muito mais longa do que às vezes uma avaliação clínica comum. “Quando a gente pensa em convênios, por exemplo, uma consulta média de um convênio médico são 15 minutos de avaliação. É impossível você fazer qualquer tipo de avaliação bem feita na área de saúde mental, ainda mais numa área que exige tanta profundidade, tanto conhecimento como o autismo, num tempo curto desse. A minha consulta dura uma hora e meia e às vezes nós precisamos de várias consultas para fazer uma avaliação bem feita e chegar ao diagnóstico. Isso tem um custo também. Eu vejo isso como sendo um problema. Não dá para fazer uma avaliação bem feita, um trabalho bem feito, num tempo muito curto. O custo é inevitável. A solução para isso deveria ser uma forma diferenciada de se planejar essas consultas na rede pública ou pelos convênios. Da maneira tradicional é impossível. Acho que vai ser um serviço extremamente insatisfatório para os dois lados, mas eu fico sempre pensando. É legal a pessoa ter um autodiagnóstico? Não, não é. Nós gostaríamos que todos tivessem avaliações adequadas, porque eu acho que não é legal de nenhuma maneira para a própria pessoa, porque ela mesma às vezes se sente uma fraude. Sem contar que ela perde todo o amparo legal do diagnóstico e pode não ter recebido uma avaliação bem feita, da maneira que ela mereceria e que produzisse respostas adequadas para a vida dela. Então, o ideal realmente seria não existir o autodiagnóstico, mas, de minha parte, eu entendo quando isso acontece. Porque a busca das pessoas pelas respostas não vai parar só pela dificuldade, ela precisa se entender”.
A situação atual dos autistas no Brasil é vista por grande parte das pessoas como desafiadora. É por isso que Raquel faz um trabalho inovador em terras brasileiras. A equipe coordenada por ela tenta muitas vezes estabelecer algumas formas diferentes daquele atendimento estruturado um para um no consultório. Embora considere que seja necessário em muitas fases da vida, a neuropsiquiatra sente que ele não basta e destaca o benefício dos trabalhos em grupo.
O Núcleo Conexão, dirigido por ela, faz um trabalho pioneiro com crianças com dupla excepcionalidade, ou seja, aquelas com autismo e superdotação. Para Raquel, são crianças duplamente marginalizadas na escola, tanto por às vezes não terem um suporte adequado para características do autismo e por causa desse desempenho intelectual diferente. “A gente tenta desenvolver trabalhos diferenciados para construir maior repertório. É a nossa psicopedagoga, a Fabiana Garcia, que faz esse grupo de dupla excepcionalidade. E a gente acredita, na verdade, que dá para fazer mais coisas. Nós estamos em uma cidade pequena, várias coisas que tentamos fazer não tiveram a adesão de pacientes, por incrível que pareça. É uma coisa que até foi surpreendente para mim, porque as pessoas estão muito acostumadas com esse atendimento estruturado um para um. Mas a gente está sempre buscando novas maneiras de fazer essa função de habilidades junto aos pacientes. Uma das coisas, por incrível que pareça, a gente teve de resistência de autistas, aqueles considerados mais “leves”, também não queriam estar em mesmos grupos que autistas que fossem mesmo moderadamente mais comprometidos que eles. A gente tentava sim uma separação lógica e coesa por faixa etária e afinidades, mas mesmo buscando objetivos mais homogêneos, nem sempre é fácil conseguir”. Ela observa que esse atendimento em grupo é muito funcional nos Estados Unidos e Canadá e permite um trabalho mais aprofundado do que no tratamento apenas individual. Por isso, ela destaca a importância de uma mudança na mentalidade que vem sendo conquistada pouco a pouco. “As crianças têm aceitado mais atendimentos em grupos e os resultados têm sido muito bons, principalmente no que se refere às habilidades sociais.”
Dia do Orgulho Autista
No dia 18 de junho, comemora-se o Dia Mundial do Orgulho Autista. A data foi celebrada pela primeira vez no ano de 2004 pela organização norte-americana Aspies for Freedom. No Brasil, especificamente em Brasília, um grupo de pais, familiares e amigos de pessoas autistas aderiu ao movimento. O primeiro tema a ser abordado no Brasil foi “Aceitação, não cura”, em 2005, durante um evento em Brasília. Desde então, a data tem se popularizado a cada ano no país. O objetivo do Dia do Orgulho Autista é mudar a visão negativa tanto dos meios de comunicação quanto da sociedade em geral com relação ao autismo. Assim, a condição passa a ser vista não como doença, mas como diferença.
É importante destacar que a visão de autismo como “diferença” não é contraditória à visão da condição como deficiência. Mas está muito mais ligada ao modelo social e dos direitos humanos da deficiência do que ao modelo médico. Assim, entende-se deficiência com uma característica da pessoa que, em interação com determinadas barreiras do ambiente, causa um prejuízo funcional na vida desse indivíduo. Portanto, se o ambiente for favorável para que a pessoa autista desenvolva suas habilidades e competências, ela poderá desenvolver o máximo do próprio potencial sem deixar de ser autista. O Orgulho Autista, inspirado no movimento do Orgulho LGBT, reconhece o potencial inato em todas as pessoas, incluindo aquelas no espectro do Autismo. O arco-íris, símbolo do infinito, é usado como o símbolo deste dia, o que representa a diversidade, com variações infinitas e infinitas possibilidades.
Muitos pais de autistas são críticos no que se refere a essa comemoração. Eles afirmam que têm orgulho dos filhos, mas não do autismo. Os ativistas do movimento pela neurodiversidade, por outro lado, alegam se tratar de um orgulho “político” e que, portanto, somente as pessoas com a condição autista podem sentir esse orgulho. Por isso, é importante lembrar as origens da data. Para os ativistas pela neurodiversidade, o Dia do Orgulho Autista não foi criado como forma de “glamourizar” a condição. O objetivo é criar uma cultura de identidade autista, até como forma de prevenir o suicídio entre autistas. Para esses ativistas, a narrativa negativa impressa ao autismo faz com que muitas pessoas no Espectro se sintam um peso para suas famílias, o que pode levar a consequências drásticas como depressão e suicídio. Estudos apontam que autistas vivem dezesseis anos a menos que a população em geral. O suicídio é a principal causa para a morte, ao lado da epilepsia.
De acordo com “Aspies for Freedom”, todas as pessoas autistas são capazes de ter uma vida significativa e gratificante com os serviços de apoio adequado. No entanto, para eles, a cobertura negativa dos meios de comunicação e uma campanha supostamente deliberada de vitimização têm criado no público a opinião de que autismo é uma “tragédia” e que os autistas não têm esperança de conseguir qualquer coisa. Assim, a disponibilidade de um teste pré-natal levaria a maioria dos autistas a serem abortados.
O segundo tópico proposto pela entidade é opor-se a “tratamentos” voltados para as pessoas autistas que sejam física ou mentalmente prejudiciais a elas. Além disso, devido à percepção pública do autismo, o uso de tratamentos antiéticos tornou-se bastante comum. Muitas vezes são terapias não aprovadas pela Medicina e perigosas, com base em práticas não baseadas em evidências ou em crenças religiosas. Aliás, para a entidade “Aspies for Freedom”, parte do problema com a visão de autismo como tragédia é carregar a ideia de que a pessoa é separável do autismo, e que há uma pessoa “normal” presa “dentro” do autismo. Os ativistas pela neurodiversidade rejeitam essa ideia ao alegarem que ser autista é o modus operandi da pessoa. Portanto, é algo que influencia cada elemento do que ela é feita. Seguindo essa linha de pensamento, “curar o autismo” seria transformar a pessoa autista em outro indivíduo que ela não é. Por isso, o “Dia do Orgulho Autista também se opõe à ideia de que o autismo deva ser curado”.
Outro tópico seria enfatizar a ideia de um espectro autista e remover a percepção das diferenças entre os vários rótulos desse Espectro. Eles argumentam que as diferenças entre esses rótulos são em muitos casos bastante nebulosas, muitas vezes baseadas no desenvolvimento infantil, tendo pouca influência sobre a natureza do adulto autista. Uma das maiores barreiras de acesso a serviços de apoio é a oferta de suporte com base em subgrupos, em vez de avaliar as necessidades do indivíduo. Isso significa que, por exemplo, alguém com autismo de “alto funcionamento” pode ter um pedido de apoio necessário negado na residência devido ao seu rótulo, ou alguém com autismo de “baixo funcionamento” pode ser considerado inapto a atividades para as quais é perfeitamente capaz.
Além disso, eles procuram aumentar o financiamento e o acesso a serviços de apoio para autistas e formas éticas de tratamento, como terapia da fala e fonoaudiologia, terapia de integração sensorial e aconselhamento. Os serviços de apoio podem ajudar as pessoas a viver vidas mais produtivas, como habitações de emergência, serviços médicos especializados, serviços de apoio e de emprego. Os “Aspies For Freedom” também defendem o fim das chamadas “campanhas de pena”, muitas vezes propagadas pelos meios de comunicação. O intuito deles é ajudar a promover uma imagem clara, realista e positiva do autismo. Para eles, autistas formam um grupo muito diverso e essas diferenças são uma parte muito importante da diversidade humana.
Por fim, o “Dia do Orgulho Autista” foi criado para combater todas formas de preconceito e ignorância. Afinal, elas podem agravar os desafios vividos pelas pessoas autistas. Isso inclui as formas de intolerância relacionadas com a cultura autista. Alguns exemplos são a ideia de que ser não autista é “melhor” do que ser autista e a ideia de que os casos mais leves e sutis não devem fazer parte do Espectro Autista.
As campanhas realizadas por autistas em redes sociais, em datas como 18 de junho, são bastante significativas. Afinal, mostram que a criação de uma cultura de orgulho da identidade autista liberta muitas pessoas no Espectro de sentirem-se mal por características inerentes à própria condição. Comportamentos que, embora muitas vezes não sejam prejudiciais, são vistos com maus olhos pelo público leigo e até por alguns especialistas, em função da “esquisitice”.
As características neurodivergentes podem trazer impactos tanto negativos quanto positivos na vida das pessoas autistas. O Dia do Orgulho Autista busca jogar luz no lado positivo dessas particularidades. Afinal, seguindo esse conceito, as pessoas autistas, munidas das ferramentas necessárias, podem explorar o máximo do próprio potencial para ser feliz e contribuir positivamente à sociedade. E é isso que todos nós queremos, não é mesmo?
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