Desde que tive filhe, minha vida deu uma bela sacudida. O casamento então, nem se fala. Havia sido 7 anos na vibe de eu e ele, ele e eu. Mas acabei por ceder às cobranças sociais e engravidei. Como autista que sou, não entendi a dica passada pelo pai de minhe filhe. Ele disse: “Filho é 95% preocupação e 5% alegria.” Percebi, beeem mais tarde que essa havia sido a dica para eu pensar em não ter. Tarde demais, claro. O destino me reservava as surpresas de ser mãe atípica, com maternidade atípica, e uma filha trans.
Logo que minha filha nasceu, eu percebi que ela estava fora da curva. Era muito inteligente, mas podia não apresentar ações esperadas de um bebê de sua idade. Só obtive o diagnóstico, quando ela já estava com 11 anos, em 2008. O prognóstico dado foi de que ela seria dependente de mim pelo resto da vida. Resto da vida? Da minha. Só se fosse. Coisa sem sentido, antecipar certezas sobre vidas que ainda estão por se formar. Fato é que hoje, minha filha surpreende a todos com sua inteligência e capacidade produtiva.
Entretanto, algo sempre assombrou nossa relação. Ela se via como menina, embora o sexo designado no nascimento fosse o masculino. Eu ficava confusa. Afinal a genitália era de um menino, mas ela era toda menina. Trazia essa percepção fechada em mim. Afinal, sempre que tentava conversar com alguém, o pai, parente, profissional da saúde ou educador, ouvia a mesmice: “ele convive com muitas mulheres”, “tenta educá-lo de maneira diferente”, “não vá mimá-lo demais, para não estragá-lo”, “eu sempre percebi um jeitinho de menina nele, vai ser homossexual.”
Pessoas limitadas. Eu não falava sobre sexualidade. Minha filha ainda não havia despertado para isso. Eu intuía algo sobre o gênero dela. Mas por todos os lados, eu só encontrava ignorância, preconceito e aquele olhar de lado, comiserado diante de mim. Mas, também, ao mesmo tempo que aliviado em saber que aquele ‘problema’ ela não tinha.
Com o tempo fui ficando cada vez mais fechada em mim. Escolhi duas pessoas de confiança para trocar ideias: meu psicólogo e um amigo educador que se revelou meu grande suporte. Para o desespero de minha filha que se sentia invadida por alguém que parecia saber sobre ela. Foram tempos muito difíceis: dos 11 aos 18 anos.
Com o tempo, eu já estava ‘quase’ acostumada com o olhar de piedade dos pais de filhos ‘perfeitos’. Ora bolas, filho perfeito pelo que sei, é aquele que vem para a gente, do jeitinho que é. Mas vamos lá. Entretanto, com o desabrochar da possível sexualidade de meu filhe, os olhares eram de mais pena, ainda. Uma pessoa decretou que eu havia acertado na loteria, às avessas. Relevei. A ignorância e acomodação restringem e limitam o entendimento das pessoas. Sem contar coisas do tipo, “ainda prefiro a minha sina
de ter perdido meu filho, mesmo que jovem”. Inacreditável!!! Ainda bem que minha espiritualidade é fortalecida e forjada dia após dia.Assim, chegamos ao início da pandemia. Muita coisa para rever. Uma vida a repensar. Em outubro de 2020, Sophia inicia sua transição social. Apoio integralmente e começo um trabalho de formiguinha na família, para que eles pudessem ter suas opiniões sim, mas que não desrespeitassem minha menina. Até ali, meu sofrimento solitário e gigante, compreendia toda a inadequação de minha filha. E para quê? Ela era o que era e já dava provas com atitudes, estudos e ações de que era um grande valor para a sociedade.
Como sou autista e tenho algumas limitações, não pude ajudar minha menina nas questões burocráticas. Sou contemporânea da mais famosa transexual do Brasil, Roberta Close e sei que ela só conseguiu mudar sua documentação, em 2005, 15 anos depois da solicitação inicial. Aliás, bem depois de sua cirurgia, realizada em Londres, em 1989.
Em 2018, o Superior Tribunal Federal reconheceu o direito das pessoas trans de mudar nome e gênero nos documentos sem necessidade de comprovar a cirurgia de redesignação sexual ou tratamentos para mudança de gênero.
No Brasil, essa cirurgia foi autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, em 1997, com a publicação da resolução 1.482. Em 2002, o procedimento de troca do sexo masculino para o feminino passou a ser permitido em todos os hospitais – o inverso, ainda em caráter experimental, só pode ser feito em unidades universitárias.
Quando fez a operação, Roberta já contava com dez anos de consultas com psiquiatras e psicólogos. Ela, assim como minha filha, sofria com forte disforia de gênero. Entretanto, no caso de minha filha, foi tranquilo o processo de mudança de nome. Bastou ela apresentar uma série de documentos ao cartório e toda a sua documentação foi atualizada, de acordo com o gênero feminino. Isso porque o gênero, como eu soube pelo psiquiatra de minha filha, é autodeclarável. A exceção fica por conta de pessoas com alto grau de esquizofrênia ou défict Intelectual.
Agora sim. Com nome e sexo corrigidos, minha filha iniciou a transição social. Certamente, acompanhada por um psiquiatra e pelo endocrinologista. Mas esse será um assunto para amanhã. Até lá, pessoas lindas!
Selma Sueli Silva é jornalista, escritora e youtuber.
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