Sophia Mendonça e o Budismo: “Buda é aquele que consegue suportar” e mesmo o inferno pode se tornar a Terra da Luz Tranquila.
Sou membro da Brasil Soka Gakkai Internacional desde 01 de abril de 2015, quando estava com 18 anos de idade. Venho de uma família de mãe e avó com muitos anos de prática. Minha mãe desde 2005 e minha avó desde 1981. Após a minha conversão, concretizei o shakubuku em alguns jovens amigos, quando praticava em Belo Horizonte, Minas Gerais. Hoje pertenço à Comunidade Pelotas, no Rio Grande do Sul.
A minha relação com a prática iniciou-se em 2008, três anos após a conversão de minha mãe. Afinal, em 2008, eu recebi o diagnóstico de autismo. Este laudo, inclusive, era muito mais estigmatizado e de difícil acesso do que é hoje. Naquela época, vovó orientou à minha mãe que orasse por qualidade de vida e para que eu fosse um valor à sociedade. Já o restante, naturalmente, seria uma consequência disso.
Assim, minha adolescência foi carregada de desafios, que iam de uma intensa fobia social a crises de auto agressão e tentativas recorrentes de suicídio. Na época, o prognóstico era que eu seria dependente dos meus pais durante toda a vida, sem a possibilidade de cursar uma graduação. Mas, eu sempre fui protegida pela oração familiar e consegui ingressar no curso de jornalismo aos 18 anos de idade. Porém, a minha Revolução Humana, a minha real transformação, veio quando eu mesma resolvi abraçar a prática, o que ocorreu quando recebi o Gohonzon em abril de 2015.
Eu tomei essa decisão porque estava fazendo daimoku há alguns meses e notei uma mudança tão drástica nas minhas relações interpessoais que resolvi assumir a prática de vez. Aliás, eu tinha uma tutora à época para fins escolares. Por sinal, ela era uma professora de Física extremamente cética a questões mais abstratas e filosóficas. Porém, a minha prova real foi tão impressionante que ela resolveu se converter junto comigo. Ou seja, eu já recebi o Gohonzon fazendo shakubuku. Este fato, a meu ver, é um motivador que norteia toda a minha prática.
Então, minha mãe perdeu o emprego que mantinha há décadas como radialista. Resolvi propor que criássemos um projeto em conjunto. Dessa forma, nasceu o canal Mundo Autista. Inclusive, minha mãe também tem esse diagnóstico de autismo, que é uma condição mais difícil de identificar no sexo feminino. Porém, ela só descobriu isso aos 53 anos de idade, em 2016. A partir daí, começamos a produzir conteúdo e literatura sobre autismo com foco nas nuances da mulher autista adulta.
Somos também o canal de autistas mais antigo em atividade no YouTube brasileiro. Em função do meu trabalho no Mundo Autista, recebi distinções como o Prẽmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+, a Moção Congratulatória de Divinópolis (MG) e o Grande Colar do Mérito Legislativo Municipal de Belo Horizonte, tornando-me a pessoa mais jovem a receber esse último, então com 19 anos.
Tudo isso era prazeroso porque eu realmente sentia que minha atuação profissional trazia impactos sociais efetivos. Mas, infelizmente, eu também apresentava questionamentos identitários que se agravaram quando virei uma figura pública e tive que aprender a me portar como um jovem comunicador masculino. Afinal, eu afirmava ser uma mulher no corpo de homem para algumas pessoas mais íntimas desde que tinha dois anos de idade. Em 2020, abandonei as tentativas de pretensa normatividade e abracei a mulher que sempre fui. Fiz isso porque graças à prática me libertei do medo de perder o prestígio nos ambientes conservadores em que palestrava, como tribunais ou assembleias legislativas, ou de sofrer ataques de haters na Internet.
Em 2022, realizei a cirurgia de redesignação sexual, que era o meu sonho. Dessa forma, experimento o que o Sensei afirma quando diz que “Abandonar o transitório e revelar o verdadeiro” significa estabelecer uma identidade ou um “eu” firme, capaz de superar dificuldades extremas, dissipar a escuridão e manifestar a natureza da iluminação. Quanto maiores forem as dificuldades enfrentadas, mais o estado de buda resplandece em nossa vida. Estabelecer essa identidade é a forma de manifestar o estado de buda nesta existência. Quando desenvolvemos a fé para superar as piores adversidades é que podemos polir nossa natureza humana no verdadeiro sentido da palavra”.
Porém, muitos desafios ainda estavam por vir. Passei por uma intercorrência rara, daquelas que ocorre com apenas 1% da população, e desenvolvi uma fístula reto-vaginal quando estava recém-operada. Foi um grande desafio. Eu saí anêmica da cirurgia de redesignação e não poderia passar por outro procedimento enquanto não se recuperasse.
Só que, toda vez que eu me alimentava ou tomava medicações, as fezes geradas pelo que consumia passavam pelo canal vaginal recém-criado. Além de ser uma experiência desagradável, isso me gerou uma contaminação que poderia rapidamente tornar-se uma infecção generalizada. Só que eu não poderia nem fazer uma cirurgia para desviar o trânsito intestinal ou corrigir a fístula, que é uma comunicação entre o reto e a vagina, enquanto não me curasse do quadro de anemia.
Assim, eu fiquei literalmente entre a vida e a morte. Minha mãe era a única acompanhante em meio às pacientes trans, inclusive porque quase todas tinham histórico de abandono familiar. Como a cirurgia era uma especialidade da clínica e eu retornei à internação no hospital, as enfermeiras de lá não tinham treinamento para higienizar a parte interna do canal vaginal.
Mamãe então aprendeu a fazer isso com as especialistas da clínica e cuidou de mim com todo o zelo e carinho que eu poderia ter naquele momento. Certo dia, quando soube que seria internada mais uma vez, disse a ela que se fosse o caso de eu morrer, morreria feliz por ter realizado o meu sonho e também por já ter ajudado tanta gente a descobrir ou lidar com o autismo por meio do meu trabalho. Porém, reforcei que estava convicta de que aquela não era a minha hora e, parafraseando Nichiren Daishonin, “nam myoho renge kyo é como o rugido do leão. Que doença pode, portanto, ser um obstáculo?”.
Com forte fé, eu determinei que sairia viva daquela situação, até como forma de resposta aos médicos e psicólogos que já tentaram implementar em mim técnicas de cura gay na adolescência sob a desculpa de que uma autista jamais teria saúde mental para “conhecer o próprio gênero” ou “passar por uma transição hormonal”. E por mais debilitada que eu estivesse, por mais frágil que eu me sentisse, aquilo era um grão de areia se comparado à dor de ter que cortar o cabelo curto, aprender a falar sobre futebol (que eu detesto) e ser treinada a desenvolver gestos como colocar as mãos na genitália enquanto conversava com os colegas. Tudo isso para “agir como um menino” e “evitar o assédio”.
Eu queria mostrar a esses profissionais, muitos deles renomados e aplaudidos no âmbito do autismo, que uma autista trans era sim capaz de passar por aqui. E, parafraseando Fernando Pessoa, iria “transformar a queda em passos de dança”. Não à toa, a minha dissertação de mestrado, que foi aprovada com louvor acadêmico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2022, falava sobre a incidência de transgeneridade na população autista.
Dessa maneira, mesmo correndo sérios riscos de vida, jamais me abalei ou deixei de tratar com cuidado os profissionais que me atendiam, por mais inexperientes ou até negligentes que eles pudessem ser frente a esse tipo de situação. Então, após muitas bolsas de sangue e tentativas de dietas que às vezes só pioraram o quadro, eu me mantive serena. Quando atingi o nível de hemoglobina suficiente para uma nova cirurgia, colocaram em mim uma bolsa de colostomia. Aquilo era terrivelmente desconfortável e havia a possibilidade de que ela ficasse para sempre, caso a fístula não fechasse totalmente nos meses seguintes.
Esse foi um período muito estressante na minha vida. Tinha que fazer exames, cuidar da bolsa, trabalhar e ainda lidar com as sequelas emocionais de ter sido vítima de violência doméstica de um ex-namorado, que é pesquisador no grupo de pesquisa da universidade que eu integrava. Além disso, recebi o diagnóstico de Transtorno de Boderline, cujos traços ficaram marcantes em crises de desregulação emocional.
Foi nesse contexto que fui para a segunda Academia Índigo, o que talvez explique eu ter adoecido em parte da atividade. Contudo, eu estava lá. Assim, pude recitar o gongyo na casa de sensei, dialogar com preciosos amigos Soka e aprender com os veteranos. Um deles, em uma palestra no Colégio Soka, nos incentivou a persistir avançando nos estudos.
E eu, que em função do meu ex-violento estava me conformando com a possibilidade de não retornar para o doutorado, tive naquele momento a certeza de que encontraria uma solução. Em meio a uma profusão de obstáculos, que incluem o falecimento do namorado da minha mãe e conflitos profissionais, eu redigi um projeto sobre mulheres autistas para a Universidade Federal de Pelotas, onde poderia ser acolhida por um orientador autista.
Mesmo eu sendo da comunicação e este sendo um doutorado em literatura, o que tornou o processo seletivo ainda mais desafiador, eu fui aprovada para o orientador que eu queria. Nesse período, ainda tive a grata surpresa de reencontrar com minha amiga, uma jovem de 22 anos que estava passando por um período muito difícil em casa e queria morar comigo por um tempo. Ela se encantou quando falei da Academia Índigo e, como genuína discípula de Ikeda, se dedicou às orações e devorou livros do mestre. Menos de um depois, ela já estava de volta à casa da família, com o Gohonzon consagrado.
Em diálogo com os jovens, Ikeda Sensei orientou que “cada um de vocês tem seus próprios sonhos e esperanças; seu próprio estilo de vida, seus ideais, suas alegrias e sofrimentos, suas dores e aflições. No entanto, aconteça o que acontecer, sigam adiante e concretizem os sonhos e ideais que almejam. Mas, por mais maravilhosos que sejam seus sonhos, por mais nobres que sejam seus ideais ou por mais elevadas que sejam suas esperanças, se não tiverem coragem, não haverá como concretizar tudo isso. “
“Vocês podem até ter as ideias mais extraordinárias e os projetos mais incríveis do mundo, ou sentirem-se cheios de benevolência pelos outros, mas tudo isso será o mesmo que nada, a menos que tenham coragem para agir. Sem ação, seus projetos jamais existirão”.
Assim, descobri um médico maravilhoso para o tratamento da fístula e me mudei para Pelotas em agosto de 2023, logo após fazer mais uma tentativa de correção da fístula pós-redesignação. Hoje sou, também fenotipicamente, a mulher que sempre fui em essência.
Quando cheguei a Pelotas, estava morando em um lugar perigoso, onde presenciei tiroteios e era frequentemente assediada na rua porque a casa na qual morava ficava ao lado de um bordel. Usando uma bolsa de colostomia na época, com um quadro que posteriormente seria identificado como insuficiência cardíaca e longe da família, eu fiz das tripas coração para aguentar o primeiro semestre do doutorado, o trabalho durante o dia e os estudos de madrugada. Sim, porque eu dormia cerca de duas horas por dia e vivia à base de remédios e da cobrança de todos os lados. O minúsculo quarto que eu tinha na casa era quase totalmente ocupado pela cama, onde eu literalmente fazia a maior parte das refeições e urinava, porque desenvolvi uma incontinência urinária na época.
Com a insuficiência cardíaca, não dava conta de tarefas domésticas e não raro tinha dificuldades com higiene básica. Nas horas de trabalho, maquiava para esconder algumas auto agressões e tomava um banho, dessa forma ninguém nunca percebeu que eu tinha problemas. Às vezes passava dias sem comer, dois ou três, porque não conseguia preparar nada e nem sair para comprar. Fiz uma dívida, quitada pela minha mãe, de mais de dois mil reais em cheque especial, por isso às vezes também era difícil pedir por ifood. De verdade, eu só não tirei a minha vida por causa de um juramento budista. E hoje estou feliz por ter escolhido a esperança!
Durante um recesso da universidade, passei um tempo em BH, onde realizei nova avaliação e descobri que estava curada. Com isso, em outubro de 2023, pude fazer mais uma cirurgia, a última desse processo, e me ver livre da colostomia. Foi aí que finalmente terminou a minha saga da redesignação. Em abril de 2024, porém, nova surpresa desagradável: um diagnóstico de síndrome pós-chikungunya evidenciou uma já existente insuficiência cardíaca. Novamente, fiquei entre a vida e a morte, chegando a ser levada ao CTI.
Porém, nesse momento crucial, a fala da minha mãe me trouxe uma nova perspectiva. Ela me lembrou: “você é discípula de Ikeda Sensei”. Perguntei se ela estava me dizendo aquilo porque eu estava morrendo, e mamãe respondeu: “Não. É para você direcionar todas as suas células para trabalharem em sua cura”. Acordei mais tarde no mesmo dia. Estava já bastante desinchada, visto que cheguei ao hospital vinte quilos mais pesada por causa de retenção de líquido. E rapidamente, voltei para o quarto.
Dias depois, eu havia desinchado totalmente e estava curada. Mas, dessa vez, a proximidade da morte me fez pensar que queria levar a minha vida de um jeito diferente. Ou seja, queria viver com mais prazer e leveza. Além de ser livre e plena para seguir nesse caminho pela minha Revolução Humana e pelo Kosen Rufu mundial. Em junho de 2024, eu retornei a Pelotas com minha mãe, que agora mora comigo em um condomínio considerado nobre na cidade.
Antes disso, participei da Convenção Juventude Soka no Ginásio Ibirapuera, assim como a minha avó havia participado 40 anos antes. Não temo mais nada. Afinal, eu já passei por tanta coisa e sigo determinada a superar e suportar tudo o que vier pela frente. E sempre consegue transformar o veneno em remédio, converter “O Inferno na Terra da Luz Tranquila”. Quero me apropriar disso agora, viver com mais ludicidade e confiança.
Tudo isso me remete à letra do poema do grupo de dança Taiga, da BSGI, do qual faço parte: “Unir a arte e a missão Com sinceridade e humildade! Seguindo a eterna diretriz das preciosas fundadoras Vamos avançando em direção à vitória e a felicidade, Dançar em prol da paz, Dançar com emoção, Dançar manifestando a alegria da vida, Dançar revelando a beleza do coração. A incessante busca pela fama. Conduz apenas ao fracasso e a decepção, Como bailarinas da Lei Mística, O mais importante é vencer no palco da nossa missão.
Com alegria em nossos corações, Em meio às lutas e comparações, Vamos viver com dignidade e honestidade, Transmitindo coragem e esperança à humanidade. Honrando a boa sorte de possuir um Mestre da Vida, Viveremos como filhas do Rei Leão! Lutando contra todas as maldades! Cultivando verdadeiras amizades! Vamos juntas percorrer o mundo, Como a maior Correnteza da Justiça Soka!”
Nesse processo, fui acolhida durante esse processo pelos companheiros de prática e também pelas pessoas comuns, os seguidores a quem dedico o meu trabalho, e que estiveram do meu lado durante todo esse processo. Hoje, definitivamente, eu não tenho mais medo do futuro. E dessa estrada trilhada pelos mestres e na qual estamos sucedendo o sensei, eu “nunca, jamais fugirei”.
Sophia Mendonça é jornalista e escritora. Também, atua como youtuber do canal “Mundo Autista” e é colunista da “Revista Autismo/Canal Autismo“ e do “Portal UAI“. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Assim, em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Já em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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