Sobre o dossiê de ABA entregue a Macaé Evaristo. O ataque é ainda mais grave e ainda mais violento do que parece.
Quando eu era criança, eu tinha medo dos médicos e terapeutas. Esse receio virou trauma e só agora estou começando a superar. Não é que eles sejam mal-intencionados. Aliás, muito pelo contrário. Mas, no que contexto conservador da época, estavam corrompidos por uma visão acidamente negativa do autismo. Essa percepção era ligada a ideia de que aquelas características poderiam ser imprevisivelmente prejudicais àquela pessoa. E, o que para eles parecia ser muito mais importante, para quem a cercava.
Eu tinha um medo concreto, no sentido de físico. Não foram raras as vezes que me vi invalidada em minhas percepções sobre coisas básicas, que hoje a legislação enxerga como direito. Mas também eram físicos porque, quando a terapia falhava para enquadrar aos moldes desejados, mesmo que no fundo eu só estivesse sendo assertiva em uma discordância, por exemplo, a dose do meu antipsicótico era aumentada. Isso me deixava dopada, inviabilizava meu cumprimento de atividades cotidianas e foi altamente danoso para o desenvolvimento das minhas funções executivas e cognitivas. Hoje, por exemplo, tenho déficits sérios de memória que me prejudicam seriamente no trabalho, os quais eu não apresentava anteriormente.
Assim, escrevi esse texto para tentar explicar aos colegas profissionais que repudiam as críticas de autistas a ABA porque eu compreendo e, sim, apoio essa perspectiva. Aliás, ela chegou em forma de denúncia à Ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo. Aqui, não pretendo esgotar o assunto, nem muito menos me colocar na posição de dona da verdade. Quero apresentar alguns dilemas éticos que se encontram nessa forma de tratamento desde a origem.
Além disso, me preocupa muito o modo como alguns aplicadores de ABA, dentre influencers e pesquisadores, tem agido nos holofotes e na surdina. Seja associando às ciências humanas a uma visão pseudocientífica, como os tratamentos da época do COVID, seja até mesmo fazendo lobbys em grandes universidades para que projetos com outras perspectivas de pesquisa não sejam aprovados.
Dessa forma, chegamos ao primeiro momento da discussão. O autismo é mesmo uma área multidisciplinar e, portanto, não se restringe a uma questão de saúde. Mas, vemos esse lobby de profissionais da psicologia em áreas como a medicina, muitos deles sem capacitação para bancar o que dizem, tentando desmerecer trabalhos acima de sua formação em outras áreas do conhecimento, como a medicina. Colaboração não é ingerência. E o que é tão grave quanto, associar estudos por outros vieses à pseudociência diz mais da arrogância e sensação de superioridade de quem ataca, tentando transformar tudo em uma disputa de bem contra o mal. A vida não é maniqueísta.
O segundo ponto é que a narrativa desses ‘especialistas’, muitas vezes mais consolidados em redes sociais do que na pesquisa de fato, se baseia em uma visão estática da ciência, ignorando que esta compõe os processos socioculturais que vivenciamos na sociedade. Porém, na acepção do cientista Roland Barthes, o processo é o que está sempre em movimento, tornando essa ideia de resultado um mito. Além do mais, essa é uma visão positivista porque abraça toda a evolução científica que tivemos até agora. E, ao mesmo tempo, descarta qualquer possibilidade do avanço científico, direcionando o foco para apenas melhorar o que já existe. Não necessariamente por um interesse mesquinho, financeiro ou por limitação. Mas, muitas vezes, por não o conhecimento de outras áreas que nos mostram todos esses processos que compõe as humanidades.
Sem contar que nomear como pseudociência essa produção legítima por e para autistas, além de uma soberba sem tamanho, ignora que as pessoas por trás disso são pesquisadoras. Eu, por exemplo, além de doutoranda, tive minha dissertação de mestrado aprovada com distinções pela UFMG. Como isso pode ser pseudociência? Enfim, não nos baseamos por achismos e sim por um conjunto de estudos multidisciplinares que buscam eliminar certos vieses e conflitos de interesse que são danosos ao fazer científico. Nossa identificação como autistas está lá por um dever ético de assumir a nossa bagagem e trajetória enquanto desenvolvemos nossos estudos em universidades, alguns divulgados em redes sociais.
Foi graças a atitude como essa que eu, ou qualquer mulher trans, pode ter acesso ao processo de afirmação de gênero, o que tem contribuído para o tratamento e erradicação de diversas patologia nessas pessoas. Também, foi assim que os homossexuais puderam conquistar igualdade de direitos, sem serem vistos como doentes, como acontecia até os anos 1990 com validação por manuais médicos. A ciência está a serviço das pessoas e não o contrário.
Nós autistas, de diferentes níveis de suporte, temos muito o que ganhar com o avanço dos estudos mais plurais sobre o tema. Foi desse inconformismo com o que já estava estabelecido e “comprovado” cientificamente que novas práticas inclusivas surgindo e continuam aparecendo em um processo de construção. Foi graças a isso que a aplicação de técnica do ABA para cura gay, algo que conheço com a força da minha vida e do eu sofrimento, passou a ser tipificada com o criminosa.
Assim, cito o diretor do MEC, Alexandre Mapurunga. Durante o Seminário Internacional de Autismo e Educação Inclusiva que houve nessa semana, ele disse que, se a lei garante um direito a TODOS, inclusive constitucionalmente, os autistas não podem ser exceção. Então, sonhei a minha vida toda por um momento como quando o advogado e pesquisador Guilherme de Almeida entregou um dossiê sobre o ABA à Macaé Evaristo. Não aceitaremos mais violência que infrinja os Direitos Humanos, que são para todos.
Porém, o dossiê causou reação na comunidade médica empresarial, famosa por seu trabalho em mídias sociais. Longe de mim estar contra o resultado que buscam obter. Mas, em um copo vazio não cabe mais nada. E em vez de enxergar um debate sadio, o que percebi foi inflamação de ódio para gerar crises em autistas, mudanças de foco retóricas e principalmente, muito ego. Assim, disseminam-se fake news que questionam o valor científico do documento sem o menor embasamento.
Vale dizer que uma das melhores pessoas que eu conheci era uma aplicadora de ABA. Chegou a utilizar técnicas para convencer crianças de autistas que elas não LGBT. Hoje, ela largou essa seara da psicologia e aprofundou os próprios conhecimentos, conduzindo os clientes ao aprimoramento dentre de suas próprias demandas, não daquelas impostas por quem vende dificuldades para oferecer facilidades.
O problema do ABA está na origem. O pesquisador Gustavo Ruckert percebe que, não diferentemente do que ocorre com os neurotípicos, as relações entre autistas com corpo e linguagem são diversas. Isso ocorre tanto pela característica de espectro que define o autismo quanto pela pluralidade de variáveis que interferem nessa interação, o que inclui desde faixa etária e localização geográfica até gênero, etnia e classe social, assim como a possibilidade de outras condições neurológicas ou psiquiátricas coexistentes ao diagnóstico de autismo.
Além disso, Ruckert pondera que o questionamento sobre se um autista tem direito ou não a falar e ser escutado no contexto social traz consigo a provocação do que é considerado como “falar” em nossa sociedade. Assim, o autor apresenta uma série de pesquisadores que analisaram o autismo sob uma perspectiva biomédica e invalidaram a capacidade de linguagem de autistas. Com isso, ele expõe que tal saber, embora legitimado academicamente, encontra as próprias raízes muito mais em uma crença coletiva que valoriza o diálogo em praça pública em detrimento de outras maneiras de expressão comunicativa. E desse modo, tende a excluir grupos subalternizados.
Nós, autistas do Brasil, não estamos sós. Os pesquisadores Daniel Wilkenfield e Allison McCarthy mostram-se contrários a ideia de que o treinamento em ABA deve ser obrigatório para crianças autistas. Isso porque a ideia da terapia e suas aplicações se baseiam no “conserto” de alguém subalternizado. Tais imposições, dessa forma, se revelam uma grave violação à autonomia desses indivíduo. A pesquisadora Sarah Cassidy também revela que a camuflagem social excessiva, que está na base do ABA, pode aumentar o risco de suicidio na população autista, ao propor técnicas como retenção de movimentos.
Além disso, um estudo de 2021 concluiu que o ABA continua a negligenciar a estrutura do cérebro autista, a superestimulação do cérebro autista, a trajetória do desenvolvimento infantil ou a natureza complexa da psicologia humana, já que todos esses fatores foram ignorados na resposta e são ignorados na própria prática da ABA . Fornecer um tratamento que causa dor em troca de nenhum benefício, mesmo que inconscientemente, equivale a tortura e viola o requisito mais básico de qualquer terapia: não causar danos.
Sophia Mendonça é jornalista e escritora. Também, atua como youtuber do canal “Mundo Autista” e é colunista da “Revista Autismo/Canal Autismo“ e do “Portal UAI“. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Assim, em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Já em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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Vc sendo autista já fez alguma vez terapia ABA?
Você poderia disponibilizar o dossiê?
Não sou autista, mas sou mãe de um autista. Acho que quem não se identifica com Aba é só não procurar esse tipo de tratamento ao invés de criticar e fazer denúncias mal intencionadas, podendo atrapalhar o tratamento de outros autistas.
Quem é nível 1, dificilmente irá precisar de Aba. Cada pessoa é única e cada um se adapta a um tipo de tratamento.
Há um tempo atrás eu tinha preconceito contra o Aba, pois eu tinha a concepção antiga dessa abordagem. Mas como tudo no mundo, a análise do comportamento também evoluiu e se aprimorou. Hoje é mais naturalista, portanto o paciente não precisa ficar horas trancado numa sala. Meu filho tem atendimento em casa, em sua rotina. Nada é forçado e sim orientado.
O fato é que algumas clínicas se aproveitam da “onda” e aplicam de maneira inadequada, com profissionais despreparados e mal formados em Aba. Isso prejudica o tratamento dos autistas. A maioria das clínicas credenciadas em planos de saúde não aplicam Aba corretamente, infelizmente. E quem depende do plano, fica nas mãos dessas clínicas com Aba de fachada.
Deveria existir uma regulamentação sobre a Análise do Comportamento Aplicado no Brasil. Para que possa colocar regras de formação e aplicação e, finalmente, acabar com o falso Aba. E assim, ficando somente os profissionais sérios, que aplicam o Aba adequadamente.
nos EUA onde existe a maior população autista funcional funcional do mundo é aplicado ABA desde a primeira infância onde 12 meses intensivo e depois vai reduzindo a carga horaria, só no Brasil tupiniquim que existe os do contra ABA e isto não é pelos autistas é por uma ideia fixa e ideológica com planos de saúde por trás deste dossiê que vai prejudicar e muito toda comunidade autista , segregando e privando de tratamentos adequados..
Justamente, ABA não deve ser obrigatório.
Oi Sophia, sou mãe atípica e meu filho de 4 anos faz a 2 anos a terapia comportamental denver, que é ABA para bebês. Na minha experiêmcia, a terapia que é naturalista e a[licada dentro da minha casa 2h e 30min 5x por semana é uma soma muito importante no desenvolvimento do meu filho. Não tem traços de obrigação e a criança é convidada atividades mais livres porem com direcionamento. Eu não sei o que seria do meu filho sem a terapia comportamental. ele é muito feliz e bem adaptado hoje em dia e se alegra coma chegada das terapeutas. Acho que o ABA já foi e ainda é usado de forma incorreta, mas cientificamente a terapia comportamental respeitosa e bem aplicada trás resultados cientificamente e visivelmente comprovados. E eu acredito que o que distancia as pessoas de uma boa terapia comportamental é a falta de dinheiro e estarem sujeitos a profissionais ruins e mal pagos. No fim se um autista bem suportado em todas as terapias é um grande PRIVILÉGIO.
Dizer que ABA não tem comprovação científica... Aí não dá pra continuar discutindo né. Vamos parar com isso e sermos mais profissionais. Não precisam atacar ABA para defender outros métodos. Os autistas precisam da ajuda de todos. Cada um se adapta e escolhe a melhor forma de terapia.
Para quem busca uma visão mais ampla da problemática:
https://doi.org/doi:10.7282/t3-dj63-cg42
Gostaria muito de ter acesso a íntegra do dossiê apresentado. Infelizmente, existe um texto sendo divulgado nas redes sociais, mas há discussão sobre se ele é o texto verdadeiro ou não.