Adrianna Reis
Pandemia: “Num contexto de crise humanitária, não haverá um futuro feminino se, no presente, as mulheres forem menosprezadas.” ONU Mulheres
Nesse ano de 2021, a comemoração do dia internacional das mulheres traz um marco sem precedentes. O maior paradoxo no campo do gênero já vivido. Enquanto assistimos, com notório orgulho, mulheres atuando na linha de frente da pandemia da COVID-19 como profissionais de saúde, pesquisadoras cientistas, cuidadoras, inovadoras, organizadoras comunitárias e algumas das líderes internacionais e nacionais mais exemplares e eficazes no combate à pandemia, constatamos, também, os fardos desproporcionais que as mulheres carregam.
Hoje, para estar presente nessa data, nós, mulheres, estamos vivendo e resistindo por pura teimosia. Não é determinação, no sentido da firmeza e segurança, nada disso, é a teimosia ensandecida e sem muita lógica organizacional, quase inconsciente no intuito único da sobrevivência.
Antes que alguns homens venham reclamar, sabemos que a pandemia não está fácil para vocês também: desemprego e mortes não são apenas fantasmas. Por ora, suplico um mínimo de escuta empática. Essa data é nossa e fala de nossas dores. Acolham apenas. “Num contexto de crise humanitária, não haverá um futuro feminino se, no presente, as mulheres forem menosprezadas.” Assim começa o manifesto divulgado pelas organizações Think Olga e Think Eva , que produziram o relatório sobre os principais impactos da crise gerada pelo coronavírus na vida das mulheres. Os efeitos da pandemia, para além da gravidade na saúde pública e na economia, traz um risco grave ao futuro das mulheres. Aspectos persistentes na pauta feminina, como equidade, segurança, autonomia e independência femininas, que se manifestaram em tantas ações e projetos nos últimos anos no Brasil, estão sendo descartados rapidamente como questões supérfluas diante da crise causada pela pandemia, conforme o relatório da ONU Mulheres sobre COVID-19, “Violência, Saúde, Economia e Trabalho”.
Nesse contexto, os conhecidos desafios enfrentados pelas mulheres, acerca do patriarcado que subjuga e sobrecarrega essas mulheres, trazem um agravo no âmbito do isolamento domiciliar, desemprego e violência doméstica. O confinamento em que as famílias se viram obrigadas a submeter promoveu a tensão e preocupação desses núcleos familiares com reflexos na segurança, saúde e, claro, dinheiro. Tudo isso original campo fértil para as tempestades comportamentais que se aproveitam das portas fechadas. Mulheres e meninas isoladas, mas convivendo com seus parceiros violentos, ficam mais vulneráveis e excluídas de acesso a suas redes de apoio, separando-as dos recursos que podem melhor ajudá-las. A casa deixa de ser lugar de segurança o que engrossa o dado estatístico que aponta: 88% das mulheres vítimas de violência residem no mesmo lugar que seus agressores. Na mesma medida que os sistemas de saúde estão chegando ao ponto de ruptura, os abrigos de violência doméstica também estão atingindo a capacidade, o déficit de serviços tem piorado quando os centros são reaproveitados para serem usados como resposta adicional à COVID-19.
Mesmo antes da pandemia, a violência doméstica já era uma das maiores violações aos direitos humanos. Nos 12 meses anteriores a essa crise pandêmica, 243 milhões de mulheres e meninas (de 15 a 49 anos), em todo o mundo, foram submetidas à violência sexual ou física por um parceiro de seu ambiente íntimo. À medida que a pandemia continua, esse número crescente pode ser contabilizado nos casos notificados pela Central de Atendimento à Mulher, número 180, com aumento de mais de 45% de denúncias, só no estado de São Paulo, ao mesmo tempo em que as ocorrências nas delegacias da mulher caíram em torno de 25% no mesmo período. Chegamos à conclusão de que o momento atual traz múltiplos impactos no bem-estar das mulheres, em sua saúde sexual e reprodutiva, em sua saúde mental e em sua capacidade de participar e liderar a recuperação da sociedade e economia.
A expressiva subnotificação de formas de violência doméstica já havia se tornado um desafio à coleta de dados e respostas reais: menos de 40% das mulheres vítimas de violência buscavam qualquer tipo de ajuda ou denunciavam o crime. Menos de 10% das mulheres que procuravam ajuda, iam à polícia. A crise gerada pela pandemia gerou dados ainda mais inacessíveis, incluindo limitações ao acesso de mulheres e meninas a telefones e linhas de ajuda e interromperam serviços públicos como polícia, justiça e serviços sociais. Essas interrupções também podem comprometer os cuidados e o apoio de que as sobreviventes da violência doméstica precisam, como tratamento clínico de estupro, saúde mental e apoio psicossocial, o que alimenta a impunidade de seus agressores. Aqui, torna-se primordial fazer um recorte racial, já que a média nacional de feminicídio de mulheres brancas é de x, enquanto de mulheres negras é y, muito superior. Para garantir a própria sobrevivência, é preciso muita teimosia.
Outro aspecto apontado no relatório da ONU Mulheres, no contexto da pandemia, é a economia e trabalho. A difícil crise econômica mundial (e nacional) agrava a situação de mulheres no setor de trabalho e mais, mulheres trabalham em média 3 a 4 vezes mais em atividades não remuneradas. Na pandemia, esse percentual pulou para 9 vezes mais. Cuidados com manutenção da casa, cuidados com filhos, aulas online, entretenimento com as crianças confinadas, lares com pouco espaço de convivência e de tarefas domésticas redobradas.
Somando a tudo isso, a ausência dos suportes usuais de empregadas, familiares ou atividades fora de casa como academia, cursos, terapias etc que mantinham pessoas da família fora de casa, revela um cenário de caos social.Além disso, as mulheres que exercem atividades domésticas apontam situações de vulnerabilidade e maior risco de contágio da COVID19. Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com a ONU Mulheres conclui que:
Portanto, as mulheres estão em todos os níveis de atuação, desde a triagem aos cuidados diretos, trabalhando mais de 10h por dia e sem remuneração condizente. Raras são as que têm suporte doméstico de seus parceiros. Ao contrário, podem ser fardos humanos a mais e ainda hostilizam essas trabalhadoras com receios de contaminação e abandono das atividades do lar.
Por outro lado, a crise pandêmica nos permite uma oportunidade única, pois nunca na história pudemos acompanhar um fato social, de consequências tão graves, ao mesmo tempo em que ele ocorre. Sempre os prejuízos nas vidas femininas foram analisados a posteriori. Quando as mulheres não têm acesso à proteção social adequada e são, provavelmente, sobrecarregadas com cuidados não remunerados e trabalho doméstico podemos prever como resultado, que a tendência será a perda de seus meios de subsistência mais rapidamente.
A pós-pandemia trará, sem dúvidas, além dos prejuízos econômicos, prejuízos na saúde mental das mulheres. Facilmente podemos imaginar aumento de TEPT – Transtorno de Estresse Pós-Traumático, depressão, síndrome do pânico e até suicídio. É urgente, portanto, que na esteira da Covid-19, mulheres e meninas sejam colocadas no centro dos esforços de resposta e recuperação para o “novo normal”.
Nós, mulheres, sairemos marcadas pela dor da memória dos que se foram. Somos mães sem filhos, órfãs, viúvas e mulheres solitárias. Será vital o exercício do diálogo comunitário, permitir a escuta empática como uma ferramenta eficaz, onde as mais vulneráveis de suas comunidades encontrem sua voz, compartilhem suas histórias e reconheçam que suas jornadas dolorosas podem ser mais semelhantes que diferentes. O único caminho para eliminar a violência de gênero e evitar que os conflitos aconteçam novamente, será o fortalecimento das comunidades femininas, onde o olhar para o seu passado norteia o aprendizado de como iremos processar o trauma dessa crise sem precedentes. A retomada da vida esperada à dignidade da mulher será um processo complexo e demorado e não pode ser alcançado apenas por meio do trabalho da sociedade civil. Precisamos do apoio das instituições do Estado para garantir a justiça e introduzir mudanças nas políticas. Afinal, somos mulheres e sobrevivemos de teimosas que somos. Mas você pode nos dar a mão também!
Adrianna Reis de Sá é psicóloga clínica e professora universitária, com mestrado em Bioética pela UnB – Universidade Federal de Brasília. É especialista em saúde mental e autismo. Tem como área de estudo questões de gênero e direitos humanos e é palestrante sobre temas como autismo feminino, direitos humanos e maternidade. Adrianna é mãe de três filhas neurodiversas, a mais velha a ativista Amanda Paschoal. Instagram: @drica.reis.au
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