Professora da UFMG comenta obra de Sophia Mendonça no texto Sementes de autismo, transgeneridade e afetos. Assim, a análise versa principalmente sobre o livro Metamorfoses: autismo e diversidade de gênero (2023):
Então: Me emociono, primeiro porque, cada vez que uma orientanda, em especial uma mulher, defende uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado, nós estamos ampliando os corpos femininos na ciência e na universidade. Afinal, estamos abrindo caminhos para outras reflexões, que estão em um campo que é diferenciado e que precisa ser ocupado cada vez mais nos ambientes acadêmicos. E essa ocupação precisa de reconhecimento.
Assim, a pesquisa de Sophia, que deu origem à dissertação e a esta obra, é simbólica por vários motivos. Então, como orientadora, me cabe agradecer a confiança da Sophia no nosso trabalho conjunto. Isso porque buscamos estar nesta relação não com a condição de uma orientadora que vai impor a Ela um estilo de pesquisa ou de análise de um corpus. Porém, como uma orientadora que acolhe o que pretende pesquisar, entende o que Ela deseja pesquisa. E que, muitas vezes, errando, tenta acertar na troca de ideias, de reflexões e de constituição de um caminho de maturidade na investigação científica.
Assim, engana-se quem pensa que o trabalho de uma orientadora, que atua em pesquisa em dimensão afetiva, é permeado apenas pelos encontros cuja centralidade é a pesquisa. Afinal, trabalhar com afetos é estarmos abertas, orientadora e orientanda, a percorrer juntas os tortuosos e desafiadores caminhos de investigações. Eles nos deslocam e nos desconfortam para do mergulho. E depois, nos impulsionam a um (re) encontro do ponto de vista da compreensão de fenômenos, objetos e sujeitos que estão conosco neste caminhar.
Assim, por vezes chorei, sofri, sorri e me aproximei dos fatos marcantes da vida de Sophia nestes dois anos. Este é o tempo que ela cursou o mestrado no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Do mesmo modo, ali estava Sophia, lado a lado comigo, se mobilizando e nos mobilizando em trabalho, em pesquisa e em apoio mútuo.
Aliás, Sophia está na minha vida há pelo menos oito anos. Ou seja, desde quando escrevia em meu blog Tudo Bem Ser Diferente, uma criação para falar das experiências sobre educação inclusiva com meu filho Pedro. Ele morreu em janeiro de 2016. Porém, o espaço do blog se ampliou para pessoas convidadas a contribuir com as discussões sobre a deficiência. Nessa época, ela ainda era estudante de Jornalismo. E apresentava textos incríveis, abordando o autismo e os desafios cotidianos de uma juventude que se considerava à margem de muitos processos sociais. Ou seja, que recebia incompreensão ora por desinformação ora por preconceito. Ler Sophia, já naquela época, era lidar com a abertura de feridas que a maioria de nós ignorou por muitos anos.
Dessa forma, Sophia deveria escrever uma coluna semanal. Porém, o ritmo produtivo dela conseguia me desafiar em todos os meus limites. Então, comei a me surpreender com textos diários com uma densidade e uma velocidade que me impressionaram tanto, a ponto de sugerir a Sophia que criasse um espaço próprio para Ela e seus textos instigantes.
Assim, ela não precisaria se submeter a um ritmo outro, bem mais lento do que o dela. E não só: Sophia era dona de si, das suas narrativas e das suas experiências. E só mesmo ela, naquele momento, conseguiria dar conta de tanta capacidade intelectual e produtiva. Essas habilidades emergiram como cenas e capítulos tecidos ao longo da vida. E que ganhavam corpo nos textos, dia após dia. Com isso, desenrolavam anos de vivências que eram só dela, mas que encontravam eco nas de tantas outras pessoas autistas.
Normalmente, quando recebemos orientandas e orientandos com deficiência somos solicitadas por elas e eles para que tenhamos paciência com o ritmo e as singularidades de cada uma e cada um. A mim, esta solicitação nem precisaria ser feita. Isso tendo em vista que tento compreender as pessoas a partir exatamente dos seus ritmos. Explico: sempre fui uma pessoa considerada por alguns por ter uma mente ágil. Isso significa pensar em muitas coisas ao mesmo tempo e desempenhar mais de uma tarefa, atividade ou projeto simultaneamente. Quero dizer, na mesma hora. Então, para muitas pessoas, esta é uma missão impossível.
Quando criança, fazia rapidamente a atividade prevista pela professor. Aí a ociosidade me levava a querer brincar e até incomodar os colegas. Ao longo da vida, com o amadurecimento, fui aprendendo a me ocupar ou me (re) ocupar cada vez que finalizo algo que alguém ainda está realizando. Fui aprendendo também a tentar abordar um assunto de cada vez. Afinal, como a mente está em constante ebulição, em algumas interlocuções é possível que determinadas pessoas sintam dificuldades para acompanhar nosso raciocínio.
Esse aprendizado é fruto de um longo processo de autoconhecimento, que tento colocar em prática na minha vida cotidiana, compreendendo as relações complexas de ensino-aprendizagem que se constituem no ambiente da universidade. Os limites são sempre tênues entre o compreender, o não julgar e o permitir que a outra pessoa se mostre a mim, a partir de suas peculiaridades.
Estou explicando tudo isso para dizer que fui eu, desta vez, a pedir à Sophia, que tivesse paciência com o meu ritmo. Inevitavelmente, a partir de nossa convivência anterior, eu temia não conseguir acompanhá-la, não dar conta de tanta efervescência intelectual que se materializa em muitas mensagens pelo Whatsapp, inúmeros e-mails, reuniões de orientação, produção de textos para a dissertação e para os artigos que escrevemos juntas.
Sempre brinco com ela que o meu HD (hard disc) 5.0 de idade já não teria a mesma velocidade que o dela, mas tem velocidade ainda menor pensando na agilidade dos seus pensamentos e em todas as suas habilidades. Preciso de hospitalidade com as temporalidades com as quais consigo lidar em meio a tantos compromissos profissionais e tantas outras pessoas que oriento.
E assim foi: Sophia precisou se adequar a mim; eu não me adequei à Sophia. Ela tem uma capacidade e uma capilaridade de adequação, embora sempre fale em rigidez em alguns comportamentos de autistas, muito mais potente do que a minha. Sophia conseguiu se organizar, compreender os processos e os limites de uma orientadora que tem outros muitos orientandos. Assim, conseguiu entender que eu, em alguns momentos, precisava respirar.
Enquanto Sophia fazia a gestação da dissertação, eu acompanhava o lindo desabrochar de uma flor. E o desabrochar de uma flor em um complexo percurso semelhante a uma metamorfose iniciada em 2014 com experiências que hoje Ela Quer descartar e descarta do seu corpo. Mas que, ao mesmo tempo, são fundamentais para a constituição e o nascimento da mulher maravilhosa com a qual temos a oportunidade de conviver.
À Sophia, meu singelo e sincero agradecimento por toda a compreensão com os nossos ritmos, os processos reflexivos da pesquisa. E por ter feito um caminho que associa a produção de conteúdo audiovisual e jornalístico com o universo científico, no qual é nossa colega de trabalho e de pesquisa.
Algo que me toca muito é o fato de Sophia ter entrado no mestrado e ingresso no nosso Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Vulnerabilidades já como uma pessoa famosa nas redes sociais digitais e ter-se mantido com uma humildade incrível. Com isso, reconheceu um lugar de (re) começo profissional, o lugar do aprendizado, da conquista das descobertas, um estar aberta para estar em pesquisa.
Essa abertura ao conhecimento, para além do trabalho árduo construído com dignidade e afinco, é o que há de melhor na Sophia pesquisadora. Afinal, ela não disputa conhecimento, fama ou saber. Garantiu um lugar pelo que Ela é, construiu e continua construindo, com muito respeito às demais pessoas. Os encontros de Sophia com os outros e as outras se dão de modo acolhedor na pesquisa. Então, não nos resta outra opção que não seja retribuir do melhor modo que conseguimos. E Sophia recebe de volta as muitas sementes que Ela lança em forma de apoio de quem Ela consegue afetar, em seu sentido mais delicado, a quem Ela consegue tocar pelos seus escritos.
Não basta que nós, professoras e professores, façamos discursos científicos e livros em defesa da diversidade. É preciso que tenhamos uma escolha ética de vida para que corpos diversos ocupem cada vez mais as universidades e a pesquisa científica. Que estes corpos sejam bem-vindos e que tenham dignidade e plenitude e conquistem os espaços que merecem, com todos os direitos que nós devemos garantir, com direito de errar, de se afetar, de chorar.
Nós não somos máquinas produtivas nem perfeitas. Estamos nestes ambientes para aprender com a nossa existência e a existência das outras pessoas. Eu aprendi muito sendo orientadora de Sophia, estou orgulhosa pelo trajeto que Ela conseguiu em meio a todo o processo de transgeneridade pelo qual passou, por ser uma pós-graduanda da era pandêmica, que nos tirou, a todas, a possibilidade do contato presencial, dos olhares face a face, das trocas e partilhas nos territórios físicos. Ainda assim, se manteve firme, foi a primeira mulher autista Trans a defender uma dissertação de mestrado no PPGCOM UFMG, quiçá na UFMG ou talvez até no Brasil.
E sobre o livro, este prefácio não vai falar? O livro é tudo isso e muito mais, um compilado importante sobre autismo, transgeneridade e afetos. Desejo a todas as pessoas que nos lêem, que se sintam tão inspiradas e instigadas quanto eu com as inquietações que Sophia, sabiamente, nos apresenta!
Com gratidão por fazer parte desta jornada e deste florecer, brindo a diversidade de pensamento e de existências, com o texto de Sophia.
Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (UFMG)
Co-coordenadora do Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Vulnerabilidades
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