Porque tenho orgulho de ser autista. Eu gostaria que as pessoas e até pais de autistas entendessem o que eu vivencio.
Assim, ser autista hoje para mim, é o resgate de minha identidade. Mesmo que muitas pessoas, por etarismo, acreditem que na fase adulta, o diagnóstico seja dispensável. Não é. Desde quando o autoconhecimento não é bem-vindo? Eu passei a entender várias características em mim que eu lutava para camuflar, pois não seriam bem recebidas no meio social e no trabalho. Portanto, excedi meus limites várias vezes, e paguei um preço muito alto por isso.
A relação com minha família melhorou muito. É libertador deixar os rótulos de nervosinha, apeladora, sem esportiva, e outros para trás. Reconhecer minhas fragilidades e otimizar habilidades que eu muitas vezes, pensava que não tinha, descortinou um novo mundo para mim. Um mundo repleto de possibilidades. E lá se vão 5 anos e meio.
Uma das melhores coisas do cérebro neurodivergente, que não cedeu à contaminação do meio, é estudar sobre o que não entende e ter facilidade de aprender coisas que façam sentido quando esclarecidas. Assim, ao receber o diagnóstico de minha filha, quando ela estava com 11 anos, passei a estudar sobre o assunto. Não havia sentido em me curvar ao medo, ao vitimismo diante de algo que é real. E imutável. Não tem cura pois não é doença.
A primeira estranheza que tive foi com o vaticínio de um psicólogo: “Sua filha será dependente pelo resto da vida”. Gente! Isso não faz o menor sentido. Como afirmar algo sobre uma vida que ainda não se disse ao mundo? Como ser assertivo com o futuro?” Se fosse prognóstico, eu entenderia. Mas vaticínio, não. Não tem lógica.
Passei a observar aquele ser que era o meu melhor projeto. Eu havia desejado que ela fosse um valor para a sociedade. É esse o nosso compromisso com as gerações que vem depois de nós. Que elas sejam valores para a sociedade. Joguei luz nas habilidades de minha filha e tentei trabalhar as limitações. Digo tentei, porque à época, não havia tantas informações. Mas deu certo, eu acredito!
Com a questão da transgeneridade, não foi diferente. Autistas apresentam 7, 59% vezes a mais de possibilidade apresentar questões diferentes com relação ao gênero e sexualidade que pessoas típicas. Dessa forma, eu apenas enxergava o ser humano maravilhoso que minha filha é. Desde criança, eu percebia que a relação dela com o mundo, era com a identidade feminina. Afinal, sou mulher. Isso era claro para mim. Mas não para os outros que levavam para o lado da sexualidade. Logo, minha filha seria homossexual. Não era tão simples assim. O ser humano é rico e complexo.
Na adolescência, ao sentir atração pelos meninos, foi o que bastou para o rótulo de homossexual. Tudo bem se fosse. Mas eu sabia que ia além. Mais uma vez me debrucei sobre o estudo desse assunto. De uma maneira genérica aprendi que nosso cérebro nos diz sobre nosso gênero, o coração nos diz sobre nosso afeto/amor por pessoas, homens, mulheres, pessoas cis ou não. E nosso órgão genital é o que nos diz sobre nossa sexualidade.
Por isso, existem mulheres trans que não tem problema com a genitália masculina. Não é o que acontece com a Sophia. Ela tem o que antes era chamado de disforia de gênero e hoje, com o CID 11, passou a ser chamado de incongruência de gênero.
Pobres homens, pobre Freud. Já pensou descobrir que a masculinidade não reside no tão ovacionado símbolo fálico masculino? Há muito que se estudar para conhecer a complexidade do ser humano. Mas é no paradoxo de sua complexidade e simplicidade que reside toda a sua riqueza.
Portanto, acompanhar essas duas fases foi exercitar as características maternas: acolhimento, parceria, cumplicidade, descobertas conjuntas, diálogo e estudo constante. Sem julgamento. Separando o que é de minha filha, o que é meu e o que é nosso.
Me cobraram, “eu não sou como você, que aceitou tudo fácil demais.” Quanta ingenuidade. De minha aceitação sei eu. Não foi fácil lembrar de quando eu vi ‘o sexo’ no ultrassom pela primeira vez, de todas as fotos e vídeos com o Victor até 23 anos. Mas isso era comigo. Não tem a ver com ela. Não posso jogar mais esse peso sobre ela. Mirei no ser humano lindo, acolhi a mulher que sei que sempre esteve nela. Não me permiti viver na lamentação. Lamentação apaga a boa sorte. E o vitimismo nos paralisa. Eu? Eu sigo com Sophia construindo uma nova história. De amor e de esperança. E já com muitas vitórias a computar.
Texto de Selma Sueli Silva, autista e jornalista. YouTuber e mãe da Sophia Mendonça.
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O que vejo muito nos canais do Instagram sobre autismo, é que as mães normalmente são as que estão mais a par da situação dos filho ou filha que é autista. Quando tem o diagnóstico tardio, acho que nem sempre é igual ao que acompanho.
Em casa, minha família no começo até se tranquilizou em saber que sou autista, mas depois de um tempo, as pessoas continuam a viver a vida delas e eu continuo sendo eu e tenho que me readaptar ao que sou com as outras pessoas. Continuo no processo de adaptação. Tentando me entender melhor, saber os limites, mas nem sempre acontece das pessoas me entenderem.
No trabalho mesmo, trabalho com meu irmão mais velho. Na semana que ia receber meu diagnóstico, fui colocado na mesma sala que todo o resto. só tem 4 pessoas contando comigo, mas tem financeiro e comercial na mesma sala. É bem complicado me concentrar no trabalho. As vezes sinto necessidade de ficar longe, pois preciso me recompor. Na semana que decidi me afastar da sala e ficar um tempo só por um tempo e que acabou sendo todos os dias da semana ficando algumas horas longe da minha mesa, meu irmão que é meu chefe veio reclamar comigo porque fico longe da mesa toda hora. Pra ele é toda hora e pra mim foram só algumas vezes. Por conta disso, hoje em dia não saio mais da sala mesmo estressado e fico segurando tudo o que tive que me segurar na minha vida toda. As vezes, acabo me distraindo um pouco no celular porque não posso deixar me posto, então tento relaxar a mente antes de focar novamente no trabalho. Acabou sendo uma forma de estar lá e sair de lá por um tempo. A empresa é pequena e não tem estrutura para ter um autista. E como não tenho ainda o documento que comprove que tenho autismo, não tenho como procurar outro trabalho. Tem minha cunhada que diz ter misofonia (autodiagnostico) e umas semanas atrás (já sabendo que sou autista), gritou comigo dizendo que quando digito irrita ela. E tive que parar de trabalhar, pois ela não gosta de quando digito. Qualquer outra pessoa de lá pode e eu não. Fiquei a semana sem fazer muita coisa por ordem dela, até porque ela manda por lá também. Depois nas semanas seguintes, digitava lentamente e com intervalos bem longos para não ter como irritar ela e devo ter demorado milhares de vezes mais para executar algo que faria em menos tempo. Ela sempre me tratou mal gritando na frente dos outros funcionários, assim como meu irmão, mas ao menos ele parou de me zoar na frente dos outros depois que soube do meu diagnóstico. Porque em casa ou a gente faz a piada ou é a piada. Fui criado assim desde pequeno. Então muita coisa que entenderia ao pé da letra, aprendi a entender do que se trata, mas na realidade a primeira coisa que vem na minha mente é ao pé da letra mesmo e só depois de um tempo pensando que consigo me lembrar que se trata de outra coisa. Se deixasse, meu pai disse que não preciso ter um diagnóstico do psiquiatra e nem tirar o documento com o símbolo do autismo, pois se vivi 35 anos da minha vida sem saber que tinha, poderia continuar vivendo do jeito que vivo até o fim da minha vida, mas por sorte minha mãe conseguiu convencer ele de que é importante ter isso, pois enquanto tenho eles por perto, ainda tenho chance de ter um suporte maior e depois que eles se forem, se eu tiver que me virar sem ter tudo certinho, pode ser mais difícil ir atrás dos meus direitos. E depois disso, ele até começou a ler alguns livros sobre autismo que comprei pra tentar entender sobre o assunto. Tenho uma vida bem complicada quando se trata do autismo, pois nem todo mundo que está mais próximo quer entender, a maioria das vezes querem que eu me adapte para que não precisem se readaptar comigo, ao menos ouço uma vez ou outra sobre isso e toda vez passo dias, horas pensando sobre o assunto. A maior vantagem e desvantagem que temos é isso, pensar demais nas coisas, as vezes é bom que encontramos soluções e as vezes é ruim porque pensamos em algo que não deveria ficar pensando tanto.
Vitor: Tudo é resolvido com o diálogo. Como não somos bons em comunicação, às vezes, sentimos dificuldades. Leve essas situações para serem discutidas com sua terapeuta que ela vai te orientar. Tente identificar o que você está sentindo. Tipo assim: estou irritado, me sentindo injustiçado. Por que? Ah, porque a fala de meu irmão me deixou triste. Então, você respira fundo e, num outro momento diz a seu irmão. Eu compreendo que você pense que estou ficando muito distante de minha mesa. Quero dizer a você que se eu não fizer assim, fico exausto. Ficar na mesma sala com mais pessoas e outros barulhos me trazem muitos estímulos que me desorganizam. Para ser produtivo, preciso me organizar. A partir de hoje farei intervalos de 20 minutos a cada 2 horas para isso. Fica bom para a empresa?
Quanto à minha cunhada, preciso de sua orientação para não incomodá-la mas para não ser também cerceado na forma como trabalho. Somos pessoas diferentes, cada uma com uma necessidade. Seria interessante estabelecermos regras para sermos unidos e produtivos.
Procure na Amazon.com os meus livros "Minha Vida de Trás para Frente" e "Camaleônicos." Penso que eles vão poder ajudar você. Grande abraço.