"Nada sobre nós, sem nós"

Por que os autistas adultos devem repensar o sofrimento?

Por que os autistas adultos devem repensar o sofrimento? Essa constatação me trouxe uma das reflexões mais difíceis, e necessárias, da minha jornada no espectro.

A premissa é forte e, à primeira vista, pode parecer injusta. Afinal, como autista adulta, a pessoa costuma ter motivos de sobra para lamentar. Por exemplo, pode ser que ela carregue por anos um histórico de diagnósticos tardios, de incompreensão, de bullying, de ser “mal acolhida” e de ter que me mascarar até a exaustão.

Então, o sofrimento é real. E as justificativas são válidas.

Mas é aí que a mensagem que quero transmitir: quando eu fico presa à lamentação, eu estagno.

A Armadilha das Minhas Regras Antigas

Nós, autistas, ao longo da vida, criamos “regras” fixas sobre como o mundo funciona. Então, por muito tempo, a gente se pega pensando:

  • “As pessoas sempre vão me interpretar mal.”
  • “Interação social sempre termina em exaustão ou fracasso.”
  • “Não adianta eu tentar, ninguém vai entender.”

Essas regras não surgiram do nada. Na verdade, elas são cicatrizes de batalhas passadas. Portanto, são mecanismos de defesa que criamos para nos proteger de mais dor. O problema é que, ao tentar nos proteger, essas regras se tornaram a nossa prisão. Elas nos impedem de ver novas possibilidades e nos mantêm refém de um passado que, embora doloroso, não precisa ser o que define todo o nosso futuro.

Ficar no modo de autocomiseração, mesmo que justificada, nos prende exatamente no lugar de onde a gente quer sair. Assim, é como tentar dirigir o carro da própria vida olhando apenas pelo retrovisor.

O Convite: Olhar o Mundo com “Outros Olhos”

A minha proposta não é apagar o passado nem invalidar o sofrimento. Na verdade, este foi um convite corajoso que fiz para mim mesma: buscar ativamente criar esperança.

Isso significa eu fazer a escolha consciente de olhar o mundo com “outros olhos”. Para mim, isso se traduz em:

  1. Questionar meus Hábitos Ultrapassados: Será que aquela regra que eu criei há dez anos (“nunca devo falar sobre meus hiperfocos, pois as pessoas acham estranho”) ainda serve para mim hoje? Então, decidi que talvez seja hora de eu testá-la novamente, em um ambiente que pareça seguro.
  2. Mudar o Foco da Justificativa para a Ação: Em vez de focar em por que eu me sinto mal (o que eu já sei de cor), comecei a me perguntar: “O que eu posso fazer, de minúsculo que seja, para me sentir 1% melhor agora?”
  3. Permitir minha Espontaneidade: O mascaramento me tornou rígida. Além disso, o medo me tornou previsível. Contudo, ao deixar cair alguns desses velhos hábitos, eu posso redescobrir minha espontaneidade. E é nessa espontaneidade — no meu comentário autêntico, no meu interesse genuíno, no meu “sim” a algo novo — que uma nova história posso começar a escrever uma nova história.

A Boa Sorte Não é Mágica, é Ação: autistas adultos devem repensar o sofrimento

“Lamentação apaga a boa sorte” não é sobre destino ou misticismo. Na verdade, é sobre proatividade.

A “boa sorte”, neste contexto, são as oportunidades, as conexões e os momentos de alegria que eu só consigo ver quando estou com a cabeça erguida. Então, se eu estou atolada na lamentação, não consigo ver a mão estendida de um novo amigo, a porta aberta de uma nova oportunidade ou a beleza de um momento presente.

Claro que esse movimento não é fácil. Afinal, mudar padrões de pensamento que construímos ao longo de uma vida de incompreensão é um dos trabalhos mais difíceis que eu, pelo menos, já fiz. Mas, como autista adulta, eu já provei para mim mesma que sou especialista em fazer coisas difíceis.

A escolha, então, não é entre “sofrer” e “não sofrer”. Na realidade, a escolha é entre ficar presa no sofrimento que me define ou usar esse sofrimento como combustível para construir, com meus próprios olhos e minha própria espontaneidade, uma história diferente.

Vídeo – AUTISTA ADULTO: “Lamentação Apaga a Boa Sorte!” #shorts

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O que vocês pensam sobre isso? Me contem nos comentários qual “hábito ultrapassado” vocês acham que pode estar limitando suas vidas hoje.

Autora

Sophia Mendonça é jornalista, professora universitária e escritora. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UFPel). Idealizadora da mentoria “Conexão Raiz”. Ela também ministrou aulas de “Tópicos em Produção de Texto: Crítica de Cinema “na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), junto ao professor Nísio Teixeira. Além disso, Sophia dá aulas de “Literatura Brasileira Contemporânea “na Universidade Federal de Pelotas (UfPel), com ênfase em neurodiversidade e questões de gênero.

Atualmente, Sophia é youtuber do canal “Mundo Autista”, crítica de cinema no “Portal UAI” e repórter da “Revista Autismo“. Aliás, ela atua como criadora de conteúdo desde 2009, quando estreou como crítica de cinema, colaborando com o site Cineplayers!. Também, é formada nos cursos “Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica” (2020) e “A Arte do FIlme” (2018), do professor Pablo Villaça. Além disso, é autora de livros-reportagens como “Neurodivergentes” (2019), “Ikeda” (2020) e “Metamorfoses” (2023). Na ficção, escreveu obras como “Danielle, asperger” (2016) e “A Influenciadora e o Crítico” (2025).

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Ver Comentários

  • Olá, Sophia!

    Só agora, aos 60 anos eu fui identificado com TEA/TOC/TDAH, os piores prejuízos já aconteceram.
    Ha 20 anos tive crises terríveis ao descobrir que eu mesmo, e não os outros, era a causa dos meus meus fracassos. Então entrei numa guerra contra a minha natureza pra me adequar e melhorar meus resultados, mais 20 anos se passaram até descobrir que a busca frustrada por mudanças gera tanta dor quanto a condição da qual se busca sair. Decidi não mudar nada e me assumir como sou. Então numa feliz consulta com uma psiquiatra ela me mandou ir fazer os testes e, pimba!!!!.
    Entendi que meus fracassos nasciam na rigidez do " certo" que aprendi na família e na igreja; em meu próprio prejuízo não negociava nada; era rigoroso demais comigo mesmo; perfeccionista. Até o final da adolescência atraía bullying em qualquer lugar onde estava; odiei a escola até abandona-la sem terminar o Básico; e várias vezes desejei muito matar as pessoas que me impunham terríveis abusos psicológicos.
    Para diminuir meu sofrimento aprendi a desligar os pensamentos que me geravam dor e, com isso, insensibilidade com o sofrimento alheio também, e desenvolvi um amor incomum pela solidão; foi aqui que desenvolvi minhas habilidades, mas tudo veio muito atrasado.
    Todos os aspectos da minha vida sofreram prejuízos irreparáveis. Agora tento recomeçar, sem dinheiro, sem tempo, e preso num casamento infeliz do qual não posso sair.
    Mas está tudo bem, apesar disso tudo, estou animado e pela primeira vez estou feliz comigo.

    • Tenho 40 anos de idade... e já fui bastante humilhado, ofendido, roubado, zoado e batido (fisicamente)! E eu mesmo sou autista, nível 1... pode crer?

  • Oi, boa noite, Sophia, tudo bom?

    Sofri demais porque fui humilhado, ofendido, roubado, zoado e batido (fisicamente) em excesso! Não sabia os motivos de terem feito isso aí comigo... porém meu transtorno do espectro autista, nível 1 foi responsável em "explicar" para mim! Viu só?

    Não é legal ser alvo de ataques assim... nunca gostei disso aí! Está ligada nisso?

    Mas é da vida... e bola para frente! Não tenho razão?

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