Victor Mendonça e dra Kelly Robis
Quais são os benefícios para a vida do adulto pós-diagnóstico? A psiquiatra Kelly Robis fala sobre a importância do autoconhecimento na vida do autista.
Victor Mendonça: Nós já falamos aqui, no blog, sobre pessoas que se encontram com algum tipo de sofrimento. Na área do autismo, há um fenômeno crescente de pessoas que se auto diagnosticam e depois procuram o psiquiatra para um diagnóstico formal. Mas, a dra. Kelly diz algo sensacional sobre isso: “Vá ao psiquiatra como uma pessoa desprovida desses rótulos, desses critérios diagnósticos, porque você pode excluir seu maior sofrimento porque ele não se enquadra nos critérios para o espectro do autismo. O médico lida com sofrimentos que impedem que você siga sua vida com qualidade. O diagnóstico é, apenas, consequência disso.”Eu achei muito bacana pois nós estamos falando de pessoas e pessoas precisam de cuidado de uma maneira total, seja na saúde mental, na saúde física. Como você vê o rótulo do autismo? E o que pode um autista?
Dra. Kelly Robis: O que pode um autista? Tudo o que ele quiser. O importante é que, para compreender o autismo (e, às vezes o espectro autista encosta no espectro neurotípico), exige um nível de compreensão sem preconceito em um nível muito alto. O que eu quero dizer? Eu quero dizer que o sofrimento de uma pessoa que tem o diagnóstico de autismo e o de uma pessoa que é neurotípica, diante de diversas situações na vida pode ser o mesmo ou as dificuldades e os conflitos ao longo da vida, na vida adulta são muito parecidos a ponto de se estabelecer o seguinte: o diagnóstico para a pessoa com autismo é útil para ela, é útil para que ela consiga ser complacente consigo mesma. Para que ela consiga entender o seu padrão de funcionamento e ajustar a sua rotina segundo o seu padrão, para poder compreender as suas regras e tudo isso, mas para o outro, o seu diagnóstico não necessariamente vai ser determinante, principalmente se o outro tiver uma visão preconceituosa. Uma pessoa com autismo tem colocações sobre o mundo já que ela tem uma capacidade cognitiva de compreensão do universo também muito boa. E isso acrescenta muito a meu ver. Eu penso que a compreensão do autismo para além do diagnóstico exige a total falta de preconceito, exige um nível de compreensão muito alto. Se uma pessoa autista fizer uma observação sobre o mundo, ela vai conseguir acrescentar muito. Mas, se o outro tiver preconceito, ele vai pensar que a pessoa autista tem algum comprometimento e, portanto, não validar a visão dela.
Victor Mendonça: Vira o rótulo, aí não vale a pena.
dra Kelly Robis: Por isso, que eu não me canso de dizer que a pessoa autista é muito mais que o diagnóstico, porque ela tem modus operandis, o modo de funcionamento diferente. É como se fosse o modo de funcionamento de um carro: a gás, a álcool ou a gasolina. Todos esses carros conseguem fazer um trajeto parecido e conseguem chegar no mesmo lugar. A diferença é que, o modo de funcionamento e energia vão ser distintas.
Victor Mendonça: O diagnóstico é bom para aquela pessoa autista, mas não necessariamente, ela será compreendida. É importante lembrar que a gente não muda as pessoas, a gente muda o nosso comportamento e aí sim, podemos afetar a forma como as pessoas vão agir com a gente. Quando eu tive a noção do meu diagnóstico, que foi tardio, mas ainda assim, foi cedo na questão de eu poder ter uma percepção mais aguçada. Eu recebi o meu diagnóstico aos 11 anos e quando eu fiquei sabendo, aos 13, à época chamada Síndrome de Asperger. Eu comentava com as pessoas e percebia que, se por um lado as pessoas iriam me entender e compreender melhor sabendo disso, por outro, para algumas pessoas, tudo o que eu fizesse seria devido ao autismo. Por exemplo: eu tinha um dia mal-humorado. “Ah, mas você é autista”. Já ouvi de pessoas assim: “Ah, você precisa tomar mais medicação”. E não era o caso. Pessoas têm oscilações de humor que fazem parte da vida, mas é claro que na vida do autista existem especificidades que a gente vai tratando, como você ressaltou.
Para fechar, eu queria que você falasse desse modus operandis diferente. Esse modus operandis pode exigir suporte social, suporte médico para garantir uma maior qualidade de vida para a pessoa e consequentemente, a pessoa poder ser mais feliz e contribuir para a sociedade, também.
Dra Kelly Robis: A meu ver, o tratamento beneficia a pessoa autista na medida em que ele leva a um autoconhecimento, a uma autocompreensão, autocompaixão e autocomplacência. Se cada um funciona “direito”, por que que uma pessoa que tem um diagnóstico também não pode funcionar muito bem, ser feliz do seu jeito? Isso é o se permitir. Se permitir no sentido de você pode, você não é o errado por estar fora da linha da dita “normalidade”, se é que essa linha é tão importante assim ou mesmo que ela exista. Se você tem estereotipia, tem hipersensibilidade sensorial, se te incomoda barulho e por aí vai e daí? É o seu jeito. Eu considero que se permitir ter o diagnóstico é útil porque, a partir dele, você cria estratégias adaptativas. Por exemplo, se você se permitir ter estereotipia você vai criar estratégias adaptativas para você ter sua vida tranquila, se poupar do olhar de julgamento do outro, e fazer aquilo que às vezes, te deixa mais tranquilo ou menos ansioso. Então, ao meu ver, a contribuição para o mundo começa pela auto-contribuição, pelo autoconhecimento e pela autoaceitação. Eu sou muito suspeita para dizer mas, na minha opinião, o autista ele tem muito a contribuir para o universo porque ele consegue entender o universo de um jeito diferente. É como se fosse um sentido para além do que a maioria das pessoas tem, é como se eu tivesse, por exemplo, um administrador e um economista, essa empresa funciona bem de um jeito, mas se eu colocar um jornalista e uma pessoa responsável por relações públicas, essa pessoa vai ver o mundo de um jeito diferente e ela vai até conseguir descrever de um modo diferente, sabe? Então, a contribuição parte disso também, de entender que são habilidades que podem contribuir muito para o universo e que não, necessariamente, tem que ser alterado ou reajustada para o mundo.
Victor Mendonça: Como diria Temple Grandin*, uma autista famosa, “o mundo precisa de todos os tipos cérebros”, isso é muito importante na sua fala. Às vezes, a gente tem pessoas mais velhas que estão para serem diagnosticadas, às vezes, elas têm um capacitismo, uma psicofobia enraizada e elas não aceitam isso. Na realidade, como você falou, isso só vai ser um norte, isso não vai definir quem elas são. Elas vão ter estratégias mais confortáveis porque estratégias elas já tinham para se adaptar ao mundo para serem quem elas são, e alcançar tudo isso que você falou. É essa riqueza do ser humano que eu descobri tanto no livro “Camaleônicos”, sobre a vida dos autistas adultos. Nele, a única autista adulta que não tinha o diagnóstico formal e, por isso, passou por muito sofrimento, porque as pessoas não a entendiam, ela teve esse diagnóstico há pouco tempo, por uma expert que é a dra Raquel del Monde, que fez uma avaliação bem criteriosa. Ela é de São Paulo, mas aqui em BH, nós podemos contar com você. E no livro “Neurodivergentes”, você vê justamente isso, a capacidade do autista ser diferente e que isso é essencial para a nossa evolução social, na busca por acessiblidade e na busca por um mundo mais diverso, porque a diversidade é a nossa riqueza.
*Temple Grandin: Temple Grandin é uma autista que revolucionou as práticas para o tratamento racional de animais vivos em fazendas e abatedouros. Possui bacharelado em psicologia pelo Franklin Pierce College e mestrado em Zoologia na Universidade Estadual do Arizona, sendo Ph.D. em Zoologia, desde 1989, pela Universidade de Illinois.
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