O Livro que Devolveu a Voz ao Autismo no Brasil. completa 10 anos "Outro Olhar: reflexões de autista" foi escrito por Sophia Mendonça.
O Livro que Devolveu a Voz ao Autismo no Brasil. completa 10 anos. Em 2015, o mercado editorial brasileiro sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) seguia um padrão rígido: as prateleiras eram dominadas por manuais técnicos, relatos de pais ou traduções de obras estrangeiras. Assim, o autista era, quase invariavelmente, o objeto de estudo. E raramente o sujeito da sua própria história.
Foi nesse cenário que o lançamento de “Outro Olhar” marcou uma verdadeira ruptura epistêmica. Isso porque, ao inverter a lógica comum, o livro de memórias de Sophia Mendonça ofereceu o protagonismo à própria voz autista. Com isso, permitiu que o leitor acessasse essa subjetividade sem os filtros da observação clínica externa.
Dez anos depois, em 2025, a obra não é apenas um documento histórico da self-advocacy no Brasil. Além disso, ela permanece um tratado atemporal sobre a condição humana e o direito à diferença.
Como bem observou o psiquiatra Walter Camargos no prefácio da obra, Sophia apresenta “flashes de seu mundo psíquico interior”. Dessa forma, o livro funciona como um mapa cognitivo. Afinal, ele descreve a mecânica interna de situações que, externamente, poderiam ser lidas apenas como “birra” ou comportamento atípico.
Uma das contribuições mais valiosas da obra é a descrição fenomenológica da sobrecarga sensorial. Isso porque Sophia descreve o ambiente de um supermercado não como um local de compras, mas como um cenário de agressão física. Afinal, nele, a mistura de vozes, música e barulhos de caixa registradora “dá um nó no cérebro”.
A descrição da hipersensibilidade visual também é visceral:
“O quarto parece pulsar, e isso machuca os olhos do autista. Essa pulsação da luz cobre tudo e distorce o que ele vê.”
Esses relatos oferecem uma base empírica fundamental para pais e profissionais. Assim eles podem entender que, muitas vezes, o comportamento autista é uma resposta defensiva a um ambiente sensorialmente hostil.
“Outro Olhar” não segue uma cronologia rígida. Em vez disso, o livro estrutura-se como uma constelação de crônicas e ensaios. Neles, Sophia aborda a socialização não como algo intuitivo, mas como um sistema lógico a ser decodificado. Assim, ela utiliza a metáfora do “extraterrestre que aterrissou no nosso planeta”.
A autora ilustra com humor e precisão a dificuldade na pragmática da linguagem, como no episódio do “melhor cachorro-quente”. Diante de uma pergunta subjetiva, o cérebro lógico inicia uma varredura de dados (“pensar em todos os cachorros-quentes que já experimentou”). Isso resulta em um silêncio que é frequentemente — e erroneamente — interpretado como grosseria pelos neurotípicos.
Sophia Mendonça rejeita a dicotomia midiática comum do “gênio versus fardo”. Afinal, ela argumenta que elevar o autista a um patamar de “superpoderes” é perigoso, pois ignora limitações reais, assim como a visão trágica apaga as potências do indivíduo.
Em um artigo da época do lançamento, a autora pontuou sua visão com clareza:
“Não escrevi esse livro para me colocar algum rótulo, como o de heroína ou mesmo vítima. (…) Tenho qualidades e defeitos, além de muitas características autistas. Se aparecesse uma oportunidade mágica de me transformar em neurotípica eu recusaria, não por causa do autismo, mas porque aí eu não seria mais eu. E eu gosto de ser quem sou”.
O livro também é rico ao expor as dinâmicas familiares. A mãe, a jornalista Selma Sueli Silva (parceira na criação do portal Mundo Autista), é retratada como a “arquiteta da inclusão”. Isso porque erla traduz o mundo para a filha. Já a figura paterna é descrita com uma honestidade crua, mas empática. Afinal, a autora reconhece as limitações emocionais não como maldade, mas como incapacidade.
Além disso, a obra documenta a tensão entre a intervenção farmacológica e a busca espiritual. Sophia relata com transparência sua relação com o Rivotril — inicialmente “mágico”, depois causador de dependência — e o contraponto encontrado no Budismo. Assim, a filosofia budista surge como uma ferramenta cognitiva, onde a recitação de mantras atua como mecanismo de organização cerebral. Esses relatos antecipam práticas de mindfulness hoje comuns para neurodivergentes.
Hoje, Sophia Mendonça é Doutoranda em Literatura, Mestre em Comunicação e uma referência acadêmica. Embora “Outro Olhar” tenha sido publicado antes de sua transição de gênero (que viria a público em 2020), o livro carrega em seu subtexto a angústia de uma identidade em latência.
A sensação de “não pertencimento” descrita nas crônicas ganha novas camadas quando relida sob a luz da interseccionalidade entre neurodivergência e transgeneridade. Este é um tema que ela aprofundaria posteriormente em sua obra Metamorfoses (2022).
A recepção de “Outro Olhar” confirmou a demanda reprimida por esse tipo de literatura: a primeira tiragem esgotou-se em dois dias. Elogiado pela crítica internacional e por educadores, a exemplo das análises de Rita Nolasco e Eduardo Machado, o livro tornou-se bibliografia essencial para a desconstrução de preconceitos em sala de aula e consultórios.
Como observou Orestes Diniz Neto no posfácio, a obra convida a “olhar o mundo com outros olhos”. A conclusão de Sophia, usando a alegoria de sua miopia severa e do diagnóstico de autismo, resume a tese do livro. Portanto, para ela, o diagnóstico não é uma sentença, mas uma ferramenta óptica (como óculos) que permite navegar o mundo com precisão.
Em um mundo que ainda luta para acomodar a diversidade neurológica, o olhar proposto por Sophia Mendonça continua sendo, paradoxalmente, a visão mais clara disponível sobre a condição humana.
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