Hoje eu vou falar sobre o bullying no meio autista. Este é o medo dos pais e mães de autistas pequenos. Ou seja, o receio vem principalmente quando essas crianças começam a frequentar a escola. Porém, tanto o bullying quanto a exclusão começam em outros contextos, como o ambiente familiar. Ou seja, mesmo na família ele pode acontecer por meio de piadas inadequadas ou exclusões que podem se manifestar de maneira velada ou explícita.
Assim, o bullying no autista é um tema que eu tive muita dificuldade em trazer ao canal. E olha que eu nem acho que eu fui a autista que mais sofreu bullying. Porém, lembrar dessa experiência dói. Isso porque faz reviver uma série de camadas de sofrimento intenso que vem da minha adolescência.
Então, com base em minha própria vivência, acredito que as crianças têm maior habilidade para lidar com as diferenças humanas do que os adolescentes mais jovens. Além disso, eu tive a grata surpresa de, no final da adolescência, receber um suporte efetivo e acolhedor dos meus colegas. Afinal, eles já sabiam do meu diagnóstico e passaram a entender melhor as minhas características. Isso ocorreu muito porque eles gostavam da minha personalidade. Com isso, aprenderam a me olhar de outro jeito. Porém, nem sempre as situações se desenvolvem dessa maneira.
Autistas de nível 1 de suporte interagem de uma maneira bem peculiar. Porém, a aparência dessa interação é superficialmente mais próxima ao que se espera de uma pessoa neurotípica. Então, essas pessoas são muitas vezes julgadas com base nas expectativas de alguém que não apresenta diagnóstico de autismo. Assim, não é incomum que elas recebam rótulos de alguém inconveniente, desagradável ou tímida em excesso.
Portanto, crianças e adolescentes autistas são muitas vezes percebidos como alguém sem habilidade social. Daí, as pessoas que não oferecem a leitura de um diagnóstico, tendem a perceber essa característica como um defeito. Ou seja, elas definem os desafios de comunicação social da pessoa autista como algo que poderia ser superado de maneira simples, a depender do desejo próprio. Então, definem essa criança ou adolescente como alguém grosseiro, por falta de interesse e apreço pelos outros.
Porém, nem sempre é assim. Tanto que há muita discussão recente sobre a empatia no autismo. Isso porque a gente tem empatia emocional, que nos leva a sentir a cor do outro. O que pode acontecer conosco é uma dificuldade maior de perceber como serão as reações e as intenções do outro.
Então, voltando à questão do bullying, eu sofri dois tipos de bullying que me marcaram. Um deles tinha forte ligação com agressões verbais. Aí entram as falas de outras pessoas: “você se magoa, você sofre porque você deixa as pessoas entrarem na sua vida e te criticarem.” Essas afirmações sempre me incomodaram, primeiro porque uma criança não vai ter essa evolução espiritual que a gente pode desenvolver ao longo da vida.
Além disso, tem aquela anedota de um exemplo de tribunal, que o advogado de defesa elogia o juiz tão recorrentemente que o magistrado apela com ele. Então, o advogado argumenta que o cliente ouviu palavras muito piores e também não teve paciência para lidar.
Cito esse exemplo não como meio para justificar qualquer violência como defesa. Afinal, considero que toda forma de violência é uma derrota. O que eu quero dizer com isso é que as pessoas têm sentimentos. Então, essas ofensas vão se acumulando em uma bagagem que pode ser traumática. Por exemplo, alguns gatilhos dessa fase da adolescência ecoam ainda hoje em mim. Isso porque essas agressões verbais doíam muito, a depender do que me chamavam.
Porém, o bullying mais velado foi ainda mais sofrido em minha trajetória. Afinal, eu era aquela pré-adolescente que andava sozinha no recreio. Também não tinha dupla na sala. Isso foi em um ano em particular, no qual eu fiquei sem uma colega de suporte. Afinal, eu sempre tinha alguns amigos mais próximos, o que infelizmente não aconteceu nesse ano.
Assim, eu sabia que ninguém falava comigo, que todo mundo meio que me ignorava. Porém, todos esses colegas falavam mal de mim pelas costas. Ou seja, me zoavam e me criticavam. Então, mesmo parecendo que eu estava no meu canto isolada e não percebendo nada disso, eu estava analisando tudo e sofrendo com isso.
Então, eu me lembro de algumas das estratégias dos profissionais de saúde da época que trabalhavam comigo. E sem querer julgá-los, mas já fazendo uma análise, elas não foram funcionais para mim. Isso porque eles me responsabilizaram pelo bullying que eu sofria.
Em outras palavras, os psicólogos e psiquiatras avaliaram que, por eu ser autista, não tinha habilidade social. Ou seja, era como se isso justificasse as agressões. Na prática, era como se eu as merecesse. Afinal, eu era muito quieta e feminina, em uma época na qual isso não era bem visto. Então, eu teria que aprender a agir com maior agressividade e gesticular de maneira mais masculinizada, para que as pessoas me vissem como alguém mais durona. Só que eu não queria nada daquilo. Inclusive, porque não fazia sentido para a mulher que eu sou e sempre fui.
Nessa época, o mais cruel bullying que eu sofri foi de um namorado que a minha mãe tinha. Este foi um relacionamento extremamente abusivo que ela teve durante a minha adolescência. Afinal, esse namorado era muito cruel com ela. Porém, a mamãe agia de maneira ingênua e não sabia lidar com isso.
Então, eu lembro que até hoje as pessoas falam: “nossa Selma, você não percebe como fulano, toda hora que elogia a Sophia, na verdade, é uma crítica disfarçada de elogio”. Eu percebia isso. E era engraçado que ele terminava com a minha mãe várias vezes e quando ele voltava, falava que estava com muita saudade de mim. Até fazia poemas sobre a relação dele comigo e falava que conseguia ficar longe da minha mãe, mas de mim.
Tudo mentira. Afinal, quando estava comigo, ele me tratava muito mal. E se a minha mãe estivesse longe, ele gritava e berrava comigo. Ele chegava a falar que eu era uma pessoa péssima e que não apresentava a minha mãe para a família dele porque tinha medo das minhas crises, o que eu acho um peso muito grande para alguém na época com 12 anos de idade. Assim, aquilo me doeu muito. E se eu rebatesse ou contra-argumentasse, ele colocava como se eu estivesse podando a espontaneidade dele. Portanto, dizia que eu estava sendo muito reativa e fazendo tempestade no copo d’água.
Então, eu sofri muito, assim como minha mãe. Afinal, este foi um momento muito triste para todas nós. Mas, o que eu quero dizer com isso é que o bullying precisa ser olhado atentamente porque ele deixa marcas. E às vezes até hoje, quando eu vejo um grupo de pessoas conversando e eu me sinto de alguma forma deslocada naquela conversa, vem essa sensação de que eu não faço parte. Isso me lembra da escola e desse namorado que a minha mãe teve, que falava que eu era um candelabro, e não era uma vela, na relação deles.
Ou seja, tudo isso me traz as piores memórias e crises que eu já tive. Afinal, às vezes parece que as pessoas querem que a autista tenha crise para justificar os comportamentos com ela. Por exemplo, no caso desse namorado, ele diiza: “Tá vendo? Ela que é louca, ela que surtou, ela que não tem respeito, não tem educação”.
Tudo isso é muito sofrido e vai deixando realmente um impacto que se não for bem trabalhado, deixa a pessoa revoltada com a vida. Ou seja, a autista fica depressiva. E depois pessoas próximas ainda falam: “como é que essa pessoa, autista não tem autoestima?” De fato, muitas vezes eu não me vejo como alguém digna de respeito. Isso ocorre por causa da imagem que essas mesmas pessoas reforçaram em discurso de que eu era uma pessoa difícil e, portanto, tornava a vida da minha mãe e do ex dela intragável. Esses conhecidos também martelavam que os colegas não iriam me aceitar, que eu precisava de limites na marra para ser educada.
Até esse ex da minha mãe falava que em dois minutos me educava. Porém, eu tinha que fazer um esforço enorme para conseguir conviver com ele. E de fato, fui eu que consegui amenizar um pouco a situação. Até que a minha mãe teve o diagnóstico dela de autismo e percebeu que este era um relacionamento abusivo, violento e cruel. Então, ela terminou com o cara. E mesmo assim, ele continuou com algumas perseguições. Enfim, agora as coisas estão mais estáveis.
Nesse sentido, uma coisa também que me marcou muito sobre o bullying no meio autista foi o medo de revelar aos outros que eu era vítima dessa violência. Afinal, eu sabia que os profissionais de saúde e mesmo o ex da minha mãe iriam jogar a situação contra mim. Ou seja, eles iriam falar algo assim: “Tá vendo, eu não gosto, eu tô certo nessa situação, porque nem os seus colegas tesão te aguentando, pois estão te fazendo bullying”. Isso porque as pessoas esperam maturidade dos adultos. Porém, na prática nem sempre é assim.
Daí, eu escondia mesmo o bullying. E olha que nunca escondi nada da minha mãe, exceto isso. Afinal, eu tinha medo de que isso fosse visto como uma fraqueza, como de fato foi. Isso pelos profissionais de saúde que me responsabilizaram pela violência que eu sofria e me cobraram outros tipos de comportamentos. E também, pelo indivíduo que a minha mãe namorava que quis pôr limites em mim e me educa. Porém, tudo isso na verdade era para garantir o ciúme dele e desviar o foco de uma relação muito difícil que ele tinha com a própria família e, também, com a minha mãe.
Enfim, estou contando todo esse desabafo só para dizer que eu não quero que essa história se repita com ninguém. Afinal, por mais que hoje eu tenha orgulho da minha trajetória, por mais que hoje eu me veja como alguém bem-sucedida pessoal e profissionalmente, eu ainda tenho essa marca. Tudo bem, isso é algo que eu aprendi a ressignificar. Mas, se eu não a tivesse, a minha vida seria muito mais fácil, leve e gostosa. E eu quero que a vida dos autistas que venham agora, que estão vindo, seja sempre muito gostosa. Então, vamos prestar atenção nos autistas e validar os sentimentos deles. Afinal, mesmo que possam trazer uma interpretação meio rígida ou meio enviesada, onde há fumaça há fogo.
Sophia Mendonça é uma youtuber, podcaster, escritora e pesquisadora brasileira. Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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Ler esse tipo de relato é tão importante, poucas vezes me identifiquei tanto com algo. Obrigada Sophia.
Que bom saber disso! Bjo