Hoje quero falar da abordagem do autismo nível 3 de suporte no filme Quem Vai Ficar com Mary?. Este clássico de 1999 recebeu indicações ao Globo de Ouro de Melhor Comédia ou Musical e Melhor Atriz Cômica, para Cameron Diaz. O longa-metragem é, afinal, uma mistura de humor besteirol com toques de comédia romântica doce. Assim, a obra é um amontoado de piadas politicamente incorretas, com alguns momentos hilários e outros constrangedoramente desconfortáveis.
De qualquer forma, rever esse filme tantas décadas após o lançamento, e depois de tê-lo assistido pela primeira vez na adolescência, me fez analisá-lo sob uma nova perspectiva. Em primeiro lugar, é revigorante acompanhar uma comédia tão bobamente preocupada com o riso louco que vem do pastelão. Isso porque Hollywood está cada vez mais à mercê de exigências “politicamente corretas”.
Com esse receio de desagradar, muitos realizadores optaram pelos caminhos mais seguros para não gerar cancelamento. Só que essa tentativa de agradar a gregos e troianos nos leva ao declínio da arte. Afinal, é justamente por trazer algum incômodo capaz de nos tirar do status quo e nos levar à reflexão que a arte se configura como tal.
No caso de Quem Vai Ficar com Mary?, torna-se interessante e até muito bonito perceber os caminhos que a arte vai tomando para abordar o autismo nível 3 de suporte, Porém, não se trata de uma abordagem fiel e nem mesmo reconfortante. Naquele contexto dos anos 1990, o que prevalecia eram estigmas e estereótipos sobre a condição. Isso se reforçava nas abordagens cinematográficas caricaturais e muitas vezes desumanizantes.
Ou seja, personagens com maiores limitações na autonomia e na Comunicação Social eram rotulados como perigosos, ou então dignos de pena ou do riso. Aliás, em Quem Vai Ficar com Mary?, isso também acontece. Há, por exemplo, uma cena logo no começo em que o irmão autista da personagem-título agride o protagonista (Ben Stiller) porque este tocou nas suas orelhas.
Então, há uma explicação que o rapaz se incomoda quando tocam nessa zona do seu corpo. E por isso, reage com agressividade sempre que isso acontece. Já quando Stiller passa por uma situação constrangedora no banheiro, o jovem diz que o pretendente da irmã estava se “masturbando”, sem filtro, quando a ambulância chega para buscá-lo.
Apesar disso, a relação que ambos constroem ao longo do filme é muito bonita e funciona como um dos alicerces da história. Isso incluiu uma cena belíssima sobre conquistar a confiança de um autista que acontece discretamente no final do filme. Mary, por sua vez, age como uma figura materna na vida do irmão. Ela está solteira porque quer um homem que aceite e valorize sua expressão de comunicação e de convivência. Mesmo que os homens façam fila atrás dela. O que acontece por causa de sua beleza e doçura.
Há, por exemplo, uma cena em que o personagem de Matt Dilon resolve contar um caso sobre sua suposta relação com um garoto com deficiência. Tudo isso apenas para impressionar a mulher. Claramente sem conhecimento de causa, ele inventa uma história sem pé nem cabeça, na qual resgata o rapaz de sua “jaula”. A personagem de Cameron Diaz fica, então, horrorizada. Como assim, o menino com deficiência estava preso em uma jaula? Isso é tão desumano e degradante, ela observa. E isso obriga o cara a “consertar” a história.
Cenas como essa são o que o filme tem a oferecer de melhor. Afinal, elas são chocantes e politicamente incorretas. Porém, elas se direcionam ao alvo correto: ao quão ridículas são as pessoas e as sociedades que tratam como uma existências menor certos perfis de deficiência. A gente ri, mas também há uma identificação com o real. Assim, é uma crítica muito bem dada a quem ainda naturaliza comentários como esse.
No fim, o personagem de Stiller acaba sendo muito mais ridicularizado do que o garoto autista, que seria o alvo mais fácil de uma comédia desse tipo. E é muito legal ver o quanto a irmã se preocupa com o garoto, e o quanto o casal principal tem uma química fácil e inusitada. Essas interações dão uma outra credibilidade ao romance. Além disso, o elenco é eficiente e as músicas que costuram a trama conferem um toque fofo à produção.
Sophia Mendonça é jornalista, professora universitária e escritora. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Ela também ministrou aulas de “Tópicos em Produção de Texto: Crítica de Cinema “na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), junto ao professor Nísio Teixeira. Além disso, Sophia dá aulas de “Literatura Brasileira Contemporânea “na Universidade Federal de Pelotas (UfPel), com ênfase em neurodiversidade e questões de gênero.
Atualmente, Sophia é youtuber do canal “Mundo Autista”, crítica de cinema no “Portal UAI” e repórter da “Revista Autismo“. Aliás, ela atua como criadora de conteúdo desde 2009, quando estreou como crítica de cinema, colaborando com o site Cineplayers!. Também, é formada nos cursos “Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica” (2020) e “A Arte do FIlme” (2018), do professor Pablo Villaça.
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