O autismo na série Geek Girl - O Mundo Autista
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O autismo na série Geek Girl

O autismo na série Geek Girl, uma adaptação da Netflix para os livros de Holly Smale, é tema de pesquisa de Sophia Mendonça.

O autismo na série Geek Girl, uma adaptação da Netflix para os livros de Holly Smale, é tema de pesquisa de Sophia Mendonça.

O autismo na série Geek Girl, uma adaptação da Netflix para os livros de Holly Smale, é tema de pesquisa de Sophia Mendonça.

O autismo na série Geek Girl, uma adaptação da Netflix para os livros de Holly Smale, é tema de pesquisa de Sophia Mendonça.

No mês passado, tive a oportunidade de apresentar a Comunicação “Narrativas de vida de mulheres autistas: uma comparação entre o romance Geek Girl, de Holly Smale, e sua adaptação para a Netflix“. Este trabalho integra a minha pesquisa como doutoranda em Literatura na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), orientada pelo professor Doutor Gustavo Ruckert. A comunicação ocorreu durante a decima Semana de Inovação, Ensino, Pesquisa e Extensão da UFPel.

A apresentação é uma crítica literária que aborda a percepção do fenótipo feminino do autismo pela autora autista do livro e a versão televisiva de um diretor homem. Esta crítica se ancora em aspectos metodológicos inspirados nas Narrativas de Vida, de modo a extrair aspectos das relações cotidianas em pequena escala usualmente pouco observados. Assim, a apresentação relaciona literatura e meios de comunicação de televisão e streaming. Dessa forma, ela busca perceber quais são os diálogos possíveis entre as adaptações e os debates científicos sobre a temática, percebendo as diferenças e semelhanças entre as versões.

Pesquisas sobre o autismo na mulher

O autismo é uma condição marcada, na literatura médica, por dificuldades persistentes na Comunicação Social. E, além disso, por padrões de comportamento restritos e repetitivos. Tais características se manifestam desde a primeira infância nas pessoas autistas (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). Também, um dos aspectos mais lembrados desse diagnóstico é a alta discrepância entre homens e mulheres. Isso ocorre nos dados estatísticos. Essa diferença é consolidada em discurso e imaginário. Ela é, inclusive, argumento para a utilização da cor azul como emblema da condição. Afinal, a proporção de ocorrência do TEA é de quatro homens para cada mulher. Já em algumas amostras de pesquisas, que consideram apenas pessoas com desenvolvimento intelectual acima da média, a discrepância é ainda maior. Ou seja: dez homens para cada mulher (DWORZYNSKY et al, 2012). 

Porém, Kim et al. (2011) conclui que a proporção de ocorrência entre homens e mulheres é, na verdade, de 2,5 para um. Já uma meta análise recente indica proporção de três homens para cada mulher e, também, que essa proporção não costuma se alterar em todo o Espectro Autista, independentemente da faixa de desenvolvimento intelectual. A discrepância nas pesquisas é um reflexo de que, como nos lembram Kopp e Gillberg, os métodos para a identificação do autismo se baseiam em uma visão estereotipada sobre a condição masculina. Essa tendência torna-se ainda mais problemática com pesquisas que sugerem que os comportamentos e a apresentação fenotípica do autismo é diferente em mulheres.

O autismo na série Geek Girl: dos livros à Netflix

Elaborada neste contexto complexo, a presente comunicação é um estudo da adaptação do romance Geek Girl, de Holly Smale (2014), para a série de televisão homônima da Netflix (2024). Com isso, o objetivo é realizar uma crítica literária que aborda a percepção do fenótipo feminino do autismo (FREIRE, 2022) pela autora autista do livro e a versão televisiva de um diretor homem.

O romance Geek Girl narra a história de uma jovem nerd e autista que se torna uma supermodelo. Em entrevista ao jornal The Telegraph (2015), a autora Holly Smale declarou que escrever o livro foi uma catarse e que ele é baseado nas suas próprias experiências como modelo adolescente. Em janeiro de 2023, foi anunciada pela Netflix a produção de uma série de dez episódios adaptada do romance (KANTER, 2023). O livro, aliás, ganhou prêmios como o Children Books Prize e o Leads Book Award, ambos em 2014. 

Literatura Autista e Neurodiversidade

Para esse estudo, mostrou-se importante um olhar para aspectos da literatura autista (RODAS, 2018), a qual se relaciona com o conceito de neurodiversidade (SINGER, 1999). Este, aliás, é um termo criado pela socióloga australiana e mulher autista Judy Singer (1998), cuja mãe e a filha receberam o mesmo diagnóstico. Assim, a neurodiversidade propõe que diferenças neurológicas, como o autismo, são variações naturais do funcionamento humano.

Além disso, Singer defende que o ativismo autista amplia as noções do modelo social da deficiência por meio da dissolução da crença de um padrão na maneira de sentir e perceber os fenômenos. Também, ela entende que os critérios diagnósticos que restringem a ideia do autismo a uma condição psiquiátrica formada por um conjunto de déficits tornam-se superficiais quando observados pelas próprias pessoas autistas. Isso porque elas se restringem a narrar os impactos que causam sofrimento a esse grupo, quando a razão por trás desses problemas teria origem muito mais relacional. 

Listas e outras caracteŕisticas da literatura autista

Nesse raciocínio de não impor um juízo de valor que enxerga como déficits certas características autistas, como costuma ocorrer na literatura médica, a ideia de listas e enumerações como descrições é uma característica marcante dos padrões estilísticos que caracterizam um estilo comum a escritores autistas. Este também é o caso das explicações enciclopédicas, da retomada compulsiva de um tema, da fala que transborda em picos de euforia e da quebra de expectativas semânticas (RODAS, 2018).

Interessa-me, dessa forma, observar se esses padrões se manifestam na obra de Holly Smale e como eles se materializam tanto na versão literária quanto na adaptação para o streaming, de modo a revelar recortes autoficcionais de vivências autistas. Aqui, considera-se autoficção a transformação de experiências pessoais em linguagem, como é o caso do cotidiano autista, seguindo a percepção de Dubrosvsky (2014).

Qual a diferença entre autobiografia e autoficção?

A dicotomia entre autobiografia e autoficção é alvo de questionamentos nos estudos literários. Para Doubrovsky (2014), por exemplo, a autobiografia é uma tentativa de contar toda a história da própria pessoa, desde as origens. Enquanto a autoficção se caracteriza, para ele, pela possibilidade de recortes de fases diferentes dessa história. Mas, por essa ser uma crítica que pretende relacionar as obras analisadas com vivências cotidianas, dentre os estudos acerca de autobiografias e autoficções, merece destaque a conceitualização de Ida Lúcia Machado (2021) sobre Narrativas de Vida. 

A estudiosa opta pelo termo por ter seu enfoque em aspectos sociais, razões políticas e ideológicas que emergem dessas histórias. E não ao veículo que transmite a voz do autor ou o espaço de tempo coberto por ele. Assim, defende que tais narrativas surgem em fragmentos narrados em espaços mais cotidianos. Exemplos disso são as entrevistas ou conversas. Assim, elas aparecem por meio de relatos que entrelaçam fatos e ficções. Dessa forma, concluiu que elas surgem de maneira imprevisível e por vários motivos, seja pela necessidade de um desabafo ou justificativa para uma ação que os outros julguem como estranha. A autora também defende que a memória ganha fluidez por estar em contato com a imaginação. Ou seja, a dimensão dos acontecimentos, pessoas e lugares pode ser alterada. 

O que é a autocorpografia?

Esta crítica literária, além disso, busca perceber aspectos identitários de um grupo de mulheres autistas. Portanto, metodologicamente, optou-se pela criação de uma auto-corpografia (LaGuardia, 2014). Essa metodologia refere-se à compilação de relatos criativos sobre si. Aliás, estes atuam na descoberta e na composição da identidade pelos sujeitos. Assim, a auto corpografia permite refletir e perceber questões sensoriais e emocionais nos pontos de intersecção entre os trechos coletados.

O autismo na série Geek Girl, da Netflix, e nos livros de Holly Smale

Até o presente momento, foram compilados alguns excertos tanto da obra literária quanto da série para o streaming, os quais servem de ilustração para discussões a respeito do autismo. O primeiro deles a aparecer no livro, logo no primeiro capítulo, diz respeito à conceitualização da palavra geek para definir a identidade da protagonista. Afinal, ela não recebe explícitamente o rótulo de autista diagnosticada na narrativa. O romance se inicia com uma citação do dicionário, que define geek como “pessoa fora da moda ou socialmente inapta”; “entusiasta obsessivo” ou “pessoa que sente a necessidade de procurar a palavra geek no dicionário” (SMALE, 2014; p.3). 

Todas essas características são comumente associadas às pessoas autistas. Isso porque a ideia de déficit social está no cerne da condição em sua acepção de diagnóstico. Além disso, um “entusiasta excessivo” pode ser facilmente visto como alguém com interesses específicos intensos e restritos, ou hiperfocos. Já a terceira definição revela, de maneira bem-humorada, reflexos do pensamento lógico autista aplicados ao comportamento cotidiano.

Essas características, bem como a dificuldade com a linguagem figurada, podem ser observadas no trecho: 

Livro “Geek Girl”, de Holly Smale (2014, p. 6)

Você sabia que, antigamente, a palavra “geek” era usada para descrever um daqueles artistas de parque de diversão que arrancavam a cabeça de uma galinha, cobra ou morcego vivo com os dentes, como ponto alto de seus shows? Isso mesmo. Só um geek saberia uma coisa dessas. Acho que é o que as pessoas chamam de ironia.

Nesse trecho, a protagonista da obra, uma garota chamada Harriet, exemplifica na prática a materialização dessas definições de geek encontradas no dicionário. Aliás, Singer observa as semelhanças de pessoas com diagnóstico de autismo com os nerds, ao apresentarem características como dificuldades na Comunicação Social e interesses específicos intensos. Um outro exemplo, que pode ser encontrado em ambas as versões, é o forte vínculo com a melhor amiga. É que pessoas autistas, especialmente mulheres, tendem a escolher uma colega para servir de suporte nas situações sociais dos grupos em que participam. Isso está particularmente evidente nas dinâmicas que se estabelecem entre as personagens no primeiro capítulo da série Geek Girl.

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Sophia Mendonça é jornalista, professora universitária e escritora. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Ela também ministrou aulas de “Tópicos em Produção de Texto: Crítica de Cinema “na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), junto ao professor Nísio Teixeira. Além disso, Sophia dá aulas de “Literatura Brasileira Contemporânea “na Universidade Federal de Pelotas (UfPel), com ênfase em neurodiversidade e questões de gênero.

Atualmente, Sophia é youtuber do canal “Mundo Autista”, crítica de cinema no “Portal UAI” e repórter da “Revista Autismo“. Aliás, ela atua como criadora de conteúdo desde 2009, quando estreou como crítica de cinema, colaborando com o site Cineplayers!. Também, é formada nos cursos “Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica” (2020) e “A Arte do FIlme” (2018), do professor Pablo Villaça.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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