Ao estilo de Clarice Lispector, sinto-me reflexiva sobre a maternidade. Isto: a maternidade em seus extremos. Ser filha. E ser mãe. O adeus da mãe é confiança no filho. O que me leva à lembrança… Num quarto do apartamento, minha mãe está deitada. Repousa na certeza de ter construído uma família da melhor forma que pode. Sem arrependimentos. Pois, à cada respectiva época, a construção se deu dentro das possibilidades e das ferramentas disponíveis.
Embora hoje, novas e mais precisas ferramentas sejam conhecidas sinto, vindo de minha mãe, o orgulho da formação das filhas. Aliás, cada uma a seu modo, contribui para a construção de uma sociedade melhor. Da mesma forma que ela própria, pioneira que foi na descoberta de alternativas ao que se acreditava imutável, em sua geração.
O avanço do ser humano é filho da provocação e do conflito, até. Filho das diferenças, que nos convidam à criatividade para construir uma convivência amorosa e produtiva. Portanto, trago comigo, o passado sempre a me lembrar que fui sim, arrastada pelo exemplo materno para, agora, usufruir desse aprendizado. Conquistei o privilégio da companhia dessa mulher sábia, às voltas com o Parkinson. Essa enfermidade parece esfregar lhe na cara, a nossa humanidade. Faz assim, na certeza de que não existe a linha de chegada, como um troféu valioso que certifique a grandeza da obra concluída.
Grandeza, aliás, evidente. Bem como o cansaço histórico de minha mãe que, a despeito de estar limitada em seu ir e vir, não perdeu a vivacidade de uma mente tão arguta quanto jovem. Certamente, eu me alimento da sabedoria expressada em sua prosa, enquanto crescemos ainda mais, juntas, grudadas. Como sempre fomos.
Então, o grito de minha filha me afasta do quarto de minha mãe e me exige presença em seu quarto. Minha menina, já adulta, não acordou bem e se divide entre a criança que anseia pelo calor e gestos maternos e a cobrança da adolescente tardia que acredita que deve ser atendida com prioridade, a tempo e hora.
Apresso-me e acolho. Mas me ressinto também. O amor carece de limites, conforme me advertiu minha psicóloga. Até mesmo o amor de mãe ou da filha. Expresso, então, com firmeza que estou preparada para ajudá-la na fragilidade imposta pelo mal-estar. Mas dispenso e não aceito a hostilidade. Estou mais velha. Meu corpo, mais cansado.
Em contraponto ao meu desejo de suavizar o dia que não começou bem para minha menina, há algo dentro dela que precisa reagir. Mesmo que ela tenha acreditado, na infância, que eu fosse capaz de conquistar e levar até ela, a felicidade desejada, em momentos sofridos. Assim, explico a ela, que me esforço para estar sempre a seu lado. Mas para motivar e incentivar.
Entretanto, filha, pelo bem de nossa relação, haverá momentos que serão somente meus. Afinal, é o espaço que eu preciso para conviver comigo mesma. Isso não é desamor. Não. O amor não é possessivo. E não é, aliás, porque há que se oxigenar o amor para mantê-lo vivo e saudável. Amor é matéria prima ao bem viver, é vivo. É vida.
Mãe, também, não pode ocupar espaço vazio na vida de filho. Qualquer que seja. A mãe adulta, de filho adulto, preza e respeita o espaço que é do filho ou da cadeia de suas relações sociais. Bem como ela anseia, numa necessidade vital, que seu espaço seja respeitado também. Não existe a mãe plena, inteira, se a mulher que a abriga, não for igualmente plena e inteira.
Por isso, talvez agora, eu me ressinta de algumas atitudes suas, enquanto emergem, em mim, sentimentos desencontrados. Volto a olhar em direção ao quarto
de minha mãe. Companheira de uma existência recheada de desafios e, por isso mesmo, de alguns fracassos e expressivas e determinantes vitórias.Respiro e repito para mim, com a voz ainda trêmula pela intensidade das emoções: “Filha, eu te amo muito. Porém, eu não posso ser a responsável por sua felicidade e, nem ao menos, por seus sofrimentos. Assumir essa responsabilidade é o que nos torna adultos. Lidar com ela, nos garante o amadurecimento.”
“Não, meu amor. Impossível não crescer e se negar à fase adulta. É preciso acreditar na vida. Mais que isso. É preciso perceber o valor da esperança. Senti-la. Afinal, sentir esperança é o que nos move para a ação construtiva de nossa vida.”
Quando você teimar em dizer que não vai dar certo, olhe para trás. Entenda a grandeza de um mundo construído por aqueles que esperançaram e não somente, esperaram. Por favor, não se agarre na justificativa de que eu sou uma mãe egoísta, que boicoto suas ações. Não filha, na verdade, hoje você sequer precisa de mim, embora sempre possa contar com minha presença e afeto.
A fase em que eu agia por você passou. Ela só existiu para que você chegasse à fase atual. De senhora de sua mente e de sua vida. Perdeu o horário de trabalho? Não comeu a comida caseira? Teve de arcar com as consequências de escolhas equivocadas? Esqueceu de tomar o remédio? Não tem dinheiro para comprar algo? Parabéns! Você está no caminho certo. O caminho que apresenta a você todos os desafios para que você encontre as alternativas e possa saborear o prazer de cada conquista. De cada vitória concretizada. Sua, somente sua.
Eu me orgulho muito dos passos que você já deu, da obra que já construiu. Mas você pode mais, como canta a feiticeira do bem, daquele desenho animado já visto por nós duas, tantas vezes. Se você ainda está onde não gostaria de estar, se faz algo que não te agrada, se não consegue se desfazer de bagagens que te pesam nos ombros, saiba: é só revisitar nossa caminhada, inclusive a caminhada espiritual. Foi em nossa caminhada que você se preparou para o acesso vitorioso à vida adulta.
Agora, você vai encontrar novos desafios e está apta à descoberta de novas ferramentas para lidar com eles. Um dia de cada vez. Focada na vitória sempre. Transformando fracassos em causas para futuras vitórias. “A caminhada da cidade de Kioto, no Japão, até Kamakura, leva exatamente 12 dias. E é ela que nos garante o acesso ao mais belo luar do mundo.”
Portanto, não há como conhecer a lua de Kamakura se você desistir no décimo primeiro dia. Essa preciosidade é reservada aos que avançam, sem medo. Mesmo que um pouco por vez. Alguém que não desista, que não transfira responsabilidades e, sobretudo, que não perca a esperança. Estarei sempre com você. Beijo carinhoso da mamãe.
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