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Mitos sobre características dos autistas

Victor Mendonça e Selma Sueli Silva

Continuando a falar sobre mitos; vira e mexe, a gente está nesse assunto. Afinal, tem que desmistificar muita coisa.

Tem algo que nos irrita: a crença de que se você olhou no olho de outra pessoa, você não é autista, porque autista não olha nos olhos.

O autista pode ou não olhar nos olhos. Há dificuldade mesmo, ainda mais para nossas criancinhas, porque quando adulta a pessoa já mascarou muita coisa. O rosto traz muita informação: dois olhos, duas sobrancelhas, uma boquinha, um nariz, dois buraquinhos debaixo do nariz…

O autista está procurando segurança no mundo, processamento sensorial, muita informação. Então acontece de ele não olhar, só que pode ser que ele vá crescendo e exercitando isso. Pode ser que, ao chegar à adolescência. ele aprenda, pois falam isso sobre ele. Muita gente usa a estratégia de olhar no meio da sobrancelha. É a mesma lógica de quando você vai tirar uma foto e tem duas pessoas com câmeras diferentes e você olha no meio e aí aparece certinho. No caso de Selma, a vovó Glória falava que quem não olha no olho, não é confiável. Selma queria ser confiável e, então, forçou a barra, olhando mais ou menos no meio das sobrancelhas, e hoje conversa olhando nos olhos das pessoas.

Acontece que, quando está discorrendo alguma coisa, na hora de falar e construir as ideias, se ela estiver conversando com a pessoa, ela olha para outro lado e depois volta para a pessoa. E na hora de ela falar, como não está processando o pensamento e a fala é mais fácil prestar atenção e olhar no rosto dela. Autista aprende tudo, para tudo existe estratégia.

Mas não para por aí. Tem os mitos que, teoricamente, podem ser vistos como coisas boas, mas acabam dando um peso para o autista que ele não necessariamente precisa ter. Aliás, peso e rótulo não são bons nunca, mas é o que mais tem. Nós mesmos temos manias de rotular os outros.

A questão é que nem todo autista é um gênio da matemática. Victor, por exemplo, é um desastre na área, e teve muitas dificuldades em seu desempenho escolar em matemática no Ensino Fundamental e Médio, quando chegou a ter aulas particulares.

O autista tem sim um cérebro lógico, e mesmo quando ele for à interação social ou para escrita de um texto, ele terá uma maneira mais lógica de perceber as coisas. Mas isso não significa que será bom em matemática.

Victor se lembra que, no oitavo ano, teve uma professora maravilhosa chamada Alessandra Toledo. Ela falava que a matemática exige muita abstração, que é exatamente a dificuldade de um autista. Tem autista com discalculia como condição coexistente; então, nem todo autista é um gênio da matemática.

Há outro mito que incomoda bastante: “o autista vive no mundo dele”; ele não consegue ter a percepção e fica no mundinho dele. Mas, a gente percebe até demais. Aliás, detalhe é com a gente mesmo. Às vezes, a gente pode não falar, mas está de olho em tudo.

Desmistificando mais ainda, já que estamos aqui para quebrar paradigmas, falam muito que os autistas não percebem as contradições nas falas das pessoas. Victor teve hiperfoco nisso e até profissionais da saúde vinham com um discurso da área do autismo, mas, na atuação, ele percebia diferente. E pensava: isso não é assim. Porque a gente, então, hiperfoca, busca padrões, raciocina em cima disso, e aí estamos mais preparados para analisar. E nós não podemos esquecer, no caso de Selma e Victor, com cérebro neurodivergente, que são eficientes na área de humanas. Das artes.

A lógica permeia todas essas questões. Lembram-se dos grandes filósofos, eles eram bons em filosofia, matemática, na escrita, porque inclusive o português exige a lógica. A linguagem exige lógica. E até a semiótica, que é a linguagem subliminar. Peirce, um dos estudiosos da semiótica que Victor estuda e vai incluir no mestrado dele em Comunicação Social, chamava semiótica de lógica. Tem gente que assusta, mas Victor, você sendo autista, vai entender de linguagem subliminar? Selma também aprendeu.

Outro mito importante é que muitas pessoas acham que autistas não se interessam por ter amigos, constituir família, ou não gostam de carinho. É até engraçado, porque Victor adora abraçar, por ser hipossensível a alguns toques. O autista pode ser hipossensível, quando ele vai buscar a sensação do abraço. Às vezes a avó de Victor, coitada, que é mais fofinha, vai à casa dele e ele a abraça. Ela mal levantou, e o Victor já está lá para abraçar.

Então, essa fala de que o autista não gosta de carinhos e abraços, também é um mito. Pessoa autista também pode ser hipersensível à questão de toques, e realmente tem essa dificuldade de ser abraçado; por exemplo, de manhã quando acorda, Victor fica mal humorado, até nem tanto por causa do autismo.

Muitos autistas têm essa dificuldade sim, mas gostam de afeto e de expressar esse afeto, e fazem isso de uma maneira diferente. Nós temos nossa própria maneira de demonstrar, e a gente não sabe como exatamente fazer amizades muitas vezes. Tem um texto sobre autismo que fala que o mundo é como uma peça de teatro que todo mundo sabe o roteiro, menos o autista.

Então, a gente tem que aprender o mundo em que nós não sabemos os códigos para jogar nele. Nós temos uma dificuldade de fazer amigos, mas temos o desejo de ter, e muitos autistas têm o desejo romântico de ter uma família, de casar, de ter filhos.

Quando o Victor entrou para o Fundamental I, uma fase complicada, era de manhã e ele acordava muito cedo, muito irritado, não se podia nem chegar perto dele. Ele entrava na van escolar e Selma fazia sinal de coração com as mãos para ele, e ele devolvia. Fofo demais; porém, isso depois passou a ser “mico”. Depois bolaram outro sinal, o de coração era muito visível, então Selma piscava de uma maneira mais lenta e Victor respondia da mesma maneira.

Tem outro mito, ainda, que diz o seguinte: se o autista fala bem, conversa muito e entende de comunicação, ou escreve bem, “me desculpe, mas isso não é coisa de autista”. Todo mundo fala que Victor escreve bem e ele tem seis livros publicados. Já Selma tem diário desde os dez anos; escreve poesias e também tem obras publicadas. É tudo uma questão de hiperfoco.

Quando Selma e Victor perceberam que tinham dificuldade para externar as próprias emoções, passaram a externar isso de maneira escrita; e quando ainda notaram que sentiam dificuldade, optaram pelo curso de Comunicação. Esse trabalho que fizeram na escrita reverberou na fala porque, tendo esse roteiro por meio da escrita, ficou mais fácil desenvolver uma fala articulada.

Inclusive, muitos dizem: “Esse menino é caladinho, autista né?”. Não. Muitos autistas falam bastante. Pode ser que não seja uma comunicação e linguagem muito funcional, porque normalmente eles já chegam antes de cumprimentar e falam — “E ai eu estava escrevendo aquele livro”, fiz assim, fiz assado… E já vão conversando sobre assuntos que não interessam ao outro.

É isso. Antes de julgar procure entender. Conheça. Mais informação, menos preconceito.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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