Depois de escrever sobre meus dias cinzentos, resolvi falar sobre ‘meu autismo, meu mundo florido’. Ao receber o diagnóstico, em 2016, pessoas me disseram para não falar que eu era autista. Por que não? Eu não conseguia entender. Finalmente, me sentia pertencendo a um grupo. Antes, eu não me enquadrava. Mas entendi. Meu sofrimento era pessoal e invisível aos outros. Declarar meu autismo, não.
Sei que essas pessoas me julgavam boa demais para ser autista. Não pensaram que, socialmente, eu compartilhava uma persona criada para eu dar conta. Precisava encarar a vida, estudar, trabalhar. E vou logo avisando. Entender a lógica de pessoas típicas, não é tão fácil quanto se imagina. Aliás, foi uma das piores coisas que encarei neste mundo.
Meu autismo, em casa
Antes de ir para a escola, eu era a boazinha entre minhas irmãs. Ou seja, eu calava, consentia, chorava escondida. Meu exterior era pura obediência. Entretanto, meu interior, um vulcão. Assim, eu me revoltava com atitudes egoístas dos adultos, com minha irmã mais velha que me considerava criança. E, ainda, minha irmã mais nova. Por exemplo, eu não conseguia entendê-la. Então, para mim, quase tudo que ela fazia beirava a irresponsabilidade.
Além disso, tinha a minha mãe, ah, minha mãe. Ela corria, se multiplicava, se reinventava para dar conta sozinha, de 3 filhas. Aliás, até a fase adulta, a culpa pela infelicidade da minha mãe me pesou nos ombros. Eu percebia que a maioria dos problemas dela, não existiria sem nós, as filhas. Ela não reclamava. Mas eu sabia. Sabia de mais coisas que gostaria. Meu entendimento, às vezes, parecia que ia estourar minha cabeça. Então, eu tinha vontade de não existir.
Meu autismo, na escola
Que época terrível. Em outras palavras, quem poderia aprender sob toda aquela pressão. Afinal, quando eu repassava, sozinha, em casa, todo o conteúdo, era bem mais leve. Aprendia assim. Contudo, os professores explicavam demais, se cansavam demais, e eram pouco assertivos. Então, voltei a me sentir culpada por aquele ofício que parecia consumir meus professores.
Mas, e nessa vida sempre existe um mas, o que me salvou foi, que uns poucos, e maravilhosos me fizeram descortinar o mundo da literatura, da semiótica. Era a confirmação que tudo tinha mais a dizer do que as pessoas queriam ver. A própria simplicidade é de uma profundidade ímpar. Esses educadores, eu os trago guardados, rodeados de gratidão, em meu coração. Foi quando eu aprendi que quem quer, encontra o caminho para realizar!
Meu autismo e o trabalho
Nossa!!! Quem se entende no mercado de trabalho? Quem só é? Ou todos se vestem de uma persona que é a cara do trabalhador eficiente e inquestionável. Acompanho as mudanças das profissões com muito prazer. Que coisa tosca colocar alguém sentado, 8 horas por dia. Não é tão simples como ligar o ‘on’ e faça, faça. E depois o ‘off’, acabou. Lembrei da escola, em que eu não entendia o aprendizado não acontecer com um diálogo aberto de pensares. O desenvolvimento vem dos diversos pensares. O aprendizado é construído todo tempo, a toda hora. No trabalho, há que se ter acesso ao oxigênio.
É isso. Ou seja, precisamos oxigenar nossas ideias. Foi por isso que criei o ‘meu autismo, meu mundo florido’. Afinal, há que ser criativo. A criatividade não vem da repetição. Vem da ousadia. E, de novo, da diversidade. Da diferença.
Meu autismo, meu mundo florido
Nas diversas fases de minha vida, escolhi oásis que me oxigenassem um ambiente pesado para mim. Coleções, desenhos, livros, pesquisas, fotografia, jardinagem. Esses últimos oxigenam meu cérebro e me permitem partir do detalhe para o todo. Enxergar o que ninguém vê. Falar não o que se espera de mim, mas o que eu decodifico do mundo. Abençoada seja a fase dos 50+. Eu quero, eu posso, eu faço o meu tempo.
Se meu corpo dói mais, se não consigo fazer tudo o que fazia antes, não importa. Hoje, sabendo de minhas limitações eu degusto a vida. Sorvo, devagarinho. Tenho hipossensibilidade no paladar. E daí, aguço todos os meus sentidos. Eu posso, eu quero, eu faço.
Foi assim que percebi a beleza de meu mundo florido. Um mundo que só existe porque o diagnóstico me convidou a olhar para fora. E a sentir aqui dentro. Sim, sentir esse quentinho gostoso no coração.
Selma Sueli Silva é jornalista, radialista, youtuber e escritora. Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial e autista. Autora de três livros e diretora do documentário “AutWork – Autistas no Mercado de Trabalho”
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