Em meu post inicial tracei um panorama sobre a maternidade atípica. E, para além disso, sobre o que apresento aqui como a maternidade atípica preta. Apesar de parecer estranho para muitos quando tratamos de “maternidades” usar o termo “atípica”. Costumo pensar nele como um marcador social. Dessa forma, um marcador necessário para ressaltar as diferenças entre a minha trajetória maternal e aquela que é costumeiramente padronizada.
Ser mãe atípica é sobre minha maternidade. Logo, não é sobre o diagnóstico do meu filho. Assim, é sobre pautar as demandas que possuo como mãe. Isso tudo, para poder apoiar e dar qualidade de vida a ele. E sem precisar sofrer constantes atravessamentos. Afinal, é ter nossos direitos, minimamente, respeitados.
Subjetividades da maternidade atípica
Muita gente não sabe, mas quando recebemos um diagnóstico para nossos filhos, com ele vem um leque de subjetividades. E tudo começa com frases capacitistas como: “Você é uma escolhida por Deus!”, “Você é uma mãe guerreira!”, “Você é uma mãe especial!”, entre tantas outras que eu poderia levar horas ou dias reproduzindo aqui.
Não importa o diagnóstico ou a patologia, o discurso social é sempre o mesmo para as mães e ele aparece quase sempre alinhado a um olhar de pena e um sorriso amarelo. A subjetividade aparente fica por conta da mensagem subliminar que ela emite, um misto de “problema seu”, de “pobre coitada” e de “ainda bem que não é meu filho!”. Sim, esses discursos capacitistas não ajudam em nada, aliás, só atrapalham e nos isolam. Eles colocam sobre nós todas as expectativas e responsabilidades emocionais e financeiras sobre a criança.
Falas assim, aparentemente empáticas, só contribuem para dizer que a mãe deve ser a “única” responsável pelo bem estar do filho e por assisti-lo em suas necessidades e outras especificidades. Isentando o pai, o Governo e até mesmo a sociedade da responsabilidade que também possuem, para garantir que a pessoa com deficiência possa receber a devida assistência, inclusão e que tenha seus direitos constitucionais respeitados. Em outro ponto, reforçam a culpabilização materna e fortalecem a ideia de que mãe e filho devem viver à parte da vida social, isolados.
Suportes para a maternidade atípica
Essas são apenas algumas questões que nos fazem adjetivar nossa maternidade como “atípica”. Não que nossa forma de maternar seja pior ou diferenciada das demais, mas em termos gerais: ela precisa de mais suportes, compreensão, acolhimento e mais uso dos serviços públicos.
Quase sempre são mães atípicas que ficam sem apoio do cônjuge ao ter um filho com deficiência ou quando as crianças recebem algum outro diagnóstico; são elas que precisam abrir mão de carreiras ou trabalho para garantir o mínimo de cuidado e escolarização aos seus filhos.
Para aquelas que são pretas, todos esses fatores citados coexistem mas há mais um marcador: o racial. A maternidade atípica preta ainda encontra atravessamentos baseados em cor, classe e região onde mora (periferia). Não é apenas a maternidade atípica que nos define socialmente, ainda precisamos lidar com as opressões que se cruzam e se inter-relacionam todo tempo com a nossa maternidade, se existe a base da pirâmide nós estamos muito abaixo dela; esquecidas e invisibilizadas. O quadro fica ainda mais complexo e mais uma vez não tem a ver com o diagnóstico de nossos filhos, mas com a convivência social e a necessidade de garantir a própria sobrevivência.
Preconceitos e maternidade atípica
As subjetividades alicerçadas em preconceitos podem nos caracterizar como exageradas, agressivas ou negligentes durante uma investigação médica, por exemplo: exagerada por perceber e discutir com o médico – e/ou qualquer outro profissional, e negligentes se o tempo entre buscar o diagnóstico e fazer os próprios “corres” não nos favorece a buscar todo o tipo de ajuda, ou quando a falta de tempo e a luta por sobrevivência limita as nossas possibilidades de tê-las. Cabe ressaltar, no entanto, que esses atendimentos tardam muito a chegar nas instituições públicas, quando chegam…
Maternidade atípica precisa de serviços sociais
Recebemos tapinhas nas costas também, mas não a mesma empatia e olhar direcionado. Precisamos correr atrás de serviços sociais, longas filas e prazos para conseguir tratamentos, perícias, insumos e qualquer outro benefício, e nem pensar em liminar, afinal pagar um advogado é algo ilusório. Sem dizer que muitas vezes estamos mais sujeitas a sermos usadas como gado eleitoral por representantes públicos que, ao dar alguma assistência ou indicação, pedem em troca votos e apoio em período eleitoral. O acompanhamento da saúde mental desta mãe é quase inexistente ou inexiste mesmo. Essa mãe fica a um passo do esgotamento físico e psicológico total, e à mercê do medo constante de morrer antes de seu filho e de que ele fique abandonado ou vire outra estatística dos números da violência.
Não somos convidadas a festinhas infantis, não temos vida social e contar com rede de apoio é para poucas de nós. Ouvimos sempre os mesmos discursos vazios e não recebemos o mesmo suporte e nem mesmo uma tentativa mais efetiva de inclusão para as nossas crianças, para que possamos nos manter no mercado de trabalho. E se o trabalho acontece, devemos abrir mão de benefícios ou o valor ofertado não é suficiente para manter a família e as necessidades de uma criança. Ainda assim, vamos… pois a ideia é a de que: “É sempre melhor pingar do que secar”, como diz o ditado.
Esperança, uma construção
Sem falar na questão do preconceito, do medo, da exposição direta à violência, da desigualdade, da privação cotidiana, da invisibilização, do esquecimento. E tudo isso, por quê? Porque “somos capazes, já passamos por muita coisa e podemos dar conta”, eles dizem. A subjetividade carregada por uma mãe atípica preta é tanta que ela precisa diariamente gritar e vociferar que precisa de apoio, de ajuda, que ela é realmente forte, mas que pouco pode, sozinha, diante de um sistema inteiro. É inerente à sua vontade se adjetivar e se racializar para mostrar que existe, que precisa de ajuda e que apenas está sobrevivendo. E assim, precisamos nos reafirmar, socialmente, para sermos encontradas e minimamente visibilizadas e encontrarmos umas às outras em meio às correrias do dia a dia.
Eu espero um dia, não precisar mais usar o termo “atípica preta” para que as pessoas entendam as nossas vivências e solicitações. Espero poder usar “atípica” por opção e “preta” por ter apenas orgulho de minha cor, de minha ancestralidade e de minha origem, como tenho. Mas até que esse dia chegue eu seguirei reafirmando que sou uma “Mãe Atípica Preta”.
Gabriela Guedes é mãe atípica do Gael, de quase 5 anos. Ativista pelos direitos das famílias de pessoas com deficiência, pelos direitos humanos e da luta antirracista e anticapacitista. Autora do Blog e do Instagram @mãeatípicapreta. Membra e uma das idealizadoras do Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam, @vndi.Brasil
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