Selma Sueli Silva e Mariana Rosa
Mariana Rosa fala sobre sua vida como mulher e sua carreira, além da divisão de tarefas com os cuidados da filha. “Se eu quero dizer para a minha filha que ela tem que ser inteira em tudo que ela quiser ser, eu também tenho que ser”.
Selma Sueli Silva: Eu deixei todo mundo com um gostinho de “quero mais” para falar hoje sobre o espaço da mulher na vida da mãe da Alice. Essa mãe que descobriu um mundo muito maior e foi aprendendo a lidar com ele. Passou a ter propriedade sobre a descoberta e constatou que esse mundo é muito melhor do que a imaginamos ao olhar de fora. Mariana, nesse mundo da inclusão tem tempo para a mulher jornalista, esposa, sonhadora? Você é muito cobrada e criticada por não se anular para viver somente o papel de mãe?
Mariana Rosa: Eu acho que a minha experiência é uma experiência de muitos privilégios. Porque a gente sabe que, entre as famílias de pessoas com deficiência, o índice de divórcio é muito alto. Eu tenho dados que dizem que eles são da ordem de 70%. Então, quer dizer: 70% das famílias que têm uma pessoa com deficiência, a mãe fica sozinha com esse filho.
Selma Sueli Silva: No Hospital da Baleia um médico ortopedista me afirmou que lá, o índice entre as mães dos pacientes dele era de 90%.
Mariana Rosa: Entre os portadores da síndrome de down, os estudos apontam que o índice é um pouco menor, da ordem de 30%. Eles até chamam de “a vantagem do down”, veja bem o que vira a questão. Mas, o que eu quero dizer é que a mulher fica sozinha para assumir esses cuidados. Ela fica sozinha com esse filho. Sozinha que eu digo é sozinha sem o marido e sem o Estado para garantir uma política pública de cuidado adequada, porque o que ela faz é um trabalho. Cuidar dos filhos é um trabalho. Claro que a gente faz isso com afeto com amor, com entrega, mas isso é um trabalho. Se essa mulher não o fizesse, alguém teria que fazer. Então, ela não tem a condição mínima para bancar o seu filho.
Muitas vezes, ela vai ter que ficar com o trabalho informal, vai ter uma vida mais precária, não vai conseguir acessar os remédios da maneira adequada. Vira uma vida mais difícil do ponto de vista de estrutura, de condição para a qualidade de vida, por causa dessa ausência do pai e do Estado e outras questões. Até por causa da sociedade machista e capacitista. Por isso, considero a minha experiência como privilegiada. Primeiro, porque eu e o pai da Alice seguimos casados. Ele é um pai presente, amoroso, dedicado, que faz o seu papel. É entregue a criação da filha, entende que isso é importante para ele principalmente, e para ela também. Isso já é um aspecto que facilita, porque os cuidados são divididos. Além disso, aqui em casa é meio a meio. Aqui não tem essa de “eu ficar com os cuidados disso ou daquilo”. Ele sabe o nome dos remédios, ele sabe o nome dos coleguinhas da escola, sabe o quanto ela calça, tem os telefones dos médicos. Então, ele participa ativamente da vida da filha, os cuidados são divididos, o que também me desonera. Isso me desonera no sentido de eu poder assumir outras atribuições e atividades que também me completam e são importantes para mim. Nesse processo, aos poucos, logo que a Alice nasceu, como contei antes, foi um início de vida muito conturbado, eu precisei desse tempo só nosso, só eu e ela. Durante mais ou menos uns dois anos, nós ficamos muito juntas e eu não fazia nada fora que era ficar com ela, cuidar dela e cuidar para que ela tivesse bem e saudável.
Depois que passou esse tempo, que a vida começou a ganhar um contorno de estabilidade, eu entendi que estava na hora da Alice ampliar o mundo dela, porque o mundo dela não pode se reduzir a mim e ao pai, ela também precisa ampliar as suas fronteiras e está na hora de eu também fazer isso. Ser mãe é maravilhoso, mas não é o único aspecto que me preenche
. E eu não vou ser a melhor mãe que eu puder ser se eu estiver negligenciando outros aspectos da minha vida. Então, nesse momento, a Alice foi para a escola que foi um processo bastante penoso também, pois houve muitas negativas, o que é pauta para outro assunto.Então, eu pude voltar para um trabalho formal, organizado, com hora de entrada e saída. Com toda uma dedicação que me realiza, que faz eu poder exercer o jornalismo, a comunicação, que são ferramentas de trabalho muito caras para mim. Fiquei um tempo assim, em empresa trabalhando. E, mais recentemente, há um ano, eu fui desligada da empresa onde eu trabalhava e aí, eu decidi investir nos estudos sobre inclusão, me aprofundar nesse tema, trabalhar e me dedicar a isso. Continuo tendo uma rotina de trabalho, só que agora não é dentro da empresa. É uma rotina que é de palestras, de estudos e outras atividades. Isso foi fundamental porque eu acho que se eu quero dizer para a minha filha que ela tem que ser inteira em tudo que ela quiser ser, eu também tenho que ser. Eu tenho que mostrar para ela que isso é possível. É claro que a gente tem que fazer isso com responsabilidade, cuidando da presença, sem negligenciar nenhum aspecto, nem para ela, nem para mim. Eu sinto que é um aprendizado e a gente precisa sim, educar muitos medos que a gente tem. Além disso, tem uma culpa que grita dentro de nós e que, na maior parte das vezes, não é uma culpa genuína. É uma culpa embutida por essa sociedade machista que acha que a mulher não pode ocupar outros espaços, que nos submete, que nos reduz. Não se pode dar ouvidos aos julgamentos. O único ouvido que eu dou para essa coisa de falar da minha vida é quando isso vem a partir de uma lugar que diz dos meus privilégios. Portanto, aponta a responsabilidade que eu tenho com isso. Como é que eu posso trabalhar para reduzir as desigualdades? Como é que eu posso atuar no mundo de maneira que outras mulheres e mães possam se realizar, possam fazer o que quiserem fazer e que elas não fiquem submetidas à ausência de política pública e de justiça social. Nesse sentido, eu ouço muito as outras mães que vivem realidades distintas da minha e faço isso com muita humildade e respeito no sentido de orientar a minha prática. É isso.
Selma Sueli Silva: Na nossa última conversa, eu terminei perguntando se você era feliz como mãe. E como mulher e profissional, você é feliz?
Mariana Rosa: Sou muito feliz. Tem desafios, não vou dizer que é fácil, justamente porque, como mulher, a gente vai desbravando, pois os caminhos não são dados. E olha que eu estou falando do lugar de mulher branca de classe média. Se eu fosse uma mulher preta, da periferia, isso seria muito pior em termo de abrir caminho, abrir espaço e abrir voz. Então, não é fácil, mas eu sinto que é o caminho que faz sentido para mim, esse de exercer os meus papéis, os meus desejos, de ser a pessoa que quer a vida inteira, que não quer só a maternidade. Não que isso seja pouco, mas isso não é o bastante.
Selma Sueli Silva: No nosso próximo encontro, nós vamos falar sobre a escola. Escola inclusiva é uma realidade?
Instagram da Mariana Rosa: @diario_da_mae_da_alice_
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