Precisamos conhecer as histórias de mulheres autistas. Isso porque, na sociedade em geral, a gente interpreta alguns fenômenos como se eles fossem dados naturais. No caso do autismo, a mulher autista recebeu muito pouco estudo em pesquisas. Afinal, havia uma série de argumentos nesse sentido de que não valia a pena investir na mulher. Ou seja, em uma lógica capitalista, as mulheres não dariam esse retorno social.
Na medida em que houve pouco estudo sobre o autismo na mulher, questões relevantes ficaram de fora dos achados científicos. Exemplos disso são os impactos das variações hormonais femininas na medicação e a cobrança cultural por uma socialização diferente das mulheres. Assim, chegamos a estatísticas esquisitas de que havia dez homens para cada mulher autista. Porém, essa discrepância foi diminuindo até chegar na proporção de quatro homens para cada mulher autista, que é constantemente repetida como se fosse um fato imutável assim.
Acontece que os estudos contemporâneos mostram que o autismo na mulher tende a se manifestar de maneira mais sutil nos casos que demandam menos suporte. Isso ocorre, principalmente, pela expectativa e cobrança social de que a mulher seja mais comunicativa e sociável. Então, essas mulheres demoram para receber o diagnóstico.
Além disso, uma pesquisa recente sugere que, se eliminado esse viés de gênero, não há diferença prática entre o número de homens e mulheres autistas. Claro que a gente precisa de mais estudos que validem isso. Mesmo assim, a estatística hoje, na última pesquisa em metanálise, foi de três para um. Isso já é bem menos diferença do que dez para um. Daí, a gente já vê que há um subdiagnóstico nessa população.
Mas, porque precisamos conhecer as histórias de mulheres autistas? De fato, existe uma diferença estatística dos diagnósticos com relação aos meninos e meninas autistas. Porém, essa questão é também social. Afinal, há um pressuposto de que as meninas sejam mais quietinhas, tímidas e silenciosas. Já os meninos são usualmente considerados mais agitados. Mas, quando eles não cumprem essa expectativa, é comum que haja uma preocupação que resulte na busca por um diagnóstico.
Isso não ocorre tanto com meninas. Afinal, é esperado e até socialmente desejável que elas sejam mais quietas e comportadas. Então, os diagnósticos surgem quando elas revelam o contrário deste comportamento quieto e recluso. Ou seja, quanto mais agitada, hiperativa e falante é a mulher, maior a chance de ela receber uma série de diagnósticos que são historicamente colocados no feminino.
Por exemplo, a noção de histeria vem como quase que um sinônimo de mulher. Aliás, a própria palavra histeria se associa a uma questão biologicamente ligada ao feminino, que é o útero. Assim, a histeria seria um sintoma resultante da presença do útero, da descamação e da menstruação.
Esta reflexão tem a ver com o modo como essas narrativas, inclusive muito associadas à saúde, constroem imagens e estereótipos que reverberam socialmente. Então, quando a gente fala em apagamentos na história, a gente fala disso. Afinal, toda narrativa, toda história que é contada, tem um lado. Isso porque ninguém dá conta da história completa. Ou seja, a História absoluta, que reflita todos os lados de um acontecimento. Então, as histórias sempre vão ser recortes.
Acontece que esses recortes vinham sendo feitos apenas pelos homens brancos e europeus. Assim, muitos deles eram médicos que entendiam na figura feminina um ser inferiorizado, um homem defeituoso. Portanto, eles não viam sentido em estudá-la. Com isso, o foco desses pesquisadores se direcionou para o próprio perfil de homens brancos poderosos e cisgênero. Esses homens, embora nem sempre heterossexuais, seguiam a lógica patriarcal. Essa visão, aliás, é sustentada e dá sustentação ao capitalismo.
Então, o apagamento vem muito por silenciamentos de histórias. Inclusive, quando essas vozes femininas ousaram se levantar. Por exemplo, na Idade Média, uma mulher que ousava reivindicar os próprios direitos e a própria existência, os seus saberes, era queimada na fogueira e considerada bruxa.
Dessa forma, há uma dimensão de silenciamentos que são concretos, no sentido de físicos. Com isso, a mulher se cala para não ser queimada na fogueira. Isso gera outros silenciamentos, uma vez que essas mulheres têm cerceado o seu direito de falar. Ou seja, eram impossibilitadas de entrar nos espaços que tinham essas comunicações mais aceitas, como a universidade e as formas de saber institucionalizadas.
Então, a gente está começando a saber a história das mulheres a partir dos movimentos feministas. Isso vem desde a primeira onda feminista e passa pelas ondas seguintes, que consideram as interseccionalidades, as diferenças e as questões de capital. Assim, temos a possibilidade de conhecer histórias que não estavam visíveis. Ou seja, que vinham sendo apagadas justamente pela ótica de quem conta. Isso porque, muitas vezes, quem vinha contando essas histórias detinha o poder da fala e do discurso e, além disso, não queria perdê-lo.
Por exemplo, é muito cômodo para os homens dizerem que as mulheres não existem na poesia de Cordel. A gente tem uma antologia muito clássica dos estudos do Cordel que é a base dos estudos folcloristas dos anos 70. Nessa obra, não há a publicação de uma única mulher. Então, uma pesquisadora, que é a Fânca Santos, escreveu para a fundação responsável pelo projeto. Daí, ela questionou os motivos de não aparecer nenhuma mulher. A resposta foi que isso ocorria porque não tinha mulher cordelista. Porém, Fânca descobriu em pesquisa que, 40 anos antes da antologia, já havia mulheres publicando cordéis.
Essas mulheres não estavam lá em função desse silenciamento. Diante disso, é muito difícil quebrar barreiras que são institucionalizadas. Isso para que se diga que na verdade existem sim, mulheres cordelistas, que produzem com qualidade. Então, o que a gente vem percebendo é que para que essas vozes apareçam, é preciso que haja uma quebra. Ou seja, é necessária uma fratura desse espaço institucionalizado que detém um poder narrativo. Por isso, a gente precisa começar a olhar para histórias que fogem daquela chamada história dos vencedores.
Nós, mulheres, nos vimos diante desses poderosos que queriam manter o poder. Este poder, aliás, está muito associado à figura do homem universal. Com isso, todas as mulheres são vistas por eles como homens defeituosos. Dessa forma, elas precisam lutar muito, trabalhar muito, melhorar muito para serem associadas a eles. Então, os movimentos de apagamento vêm daí. Ou seja, desse interesse político e econômico que silencia várias histórias.
Gisa Carvalho é professora adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão. Além disso, é professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto. Ela realizou estágio de pós-doutorado no PPGCOM da Universidade Federal de Minas Gerais, com pesquisa sobre a historiografia do cordel de autoria feminina.
Sophia Mendonça é uma youtuber, podcaster, escritora e pesquisadora brasileira. Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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