Selma Sueli e o filho Victor Mendonça são jornalistas parceiros no projeto “Mundo Asperger”. Tudo começou há dez anos, quando Victor Mendonça, 21, recebeu o diagnóstico de autismo leve ou, como era chamado à época, Síndrome de Asperger. Em 2016, foi a vez de Selma ser diagnosticada como asperger, aos 53 anos. Algum tempo e muito estudo depois, eles têm trazido informações à sociedade, para que “nenhuma outra família se sinta sozinha, como nos sentimos um dia”. São mais de 140 vídeos, que somam quase um milhão de visualizações, 40 palestras, além do blog para uma reeducação das pessoas voltadas à construção de uma sociedade inclusiva. O livro “Dez Anos Depois” (Manduruvá, 2018), que será lançado no dia 17 de setembro, na Casa do Porto, em Belo Horizonte, celebra o trabalho e a evolução da trajetória da dupla; mais que uma coletânea, é uma prova impressa da vivência de grandes desafios a partir da comunicação social – a maior dificuldade de um autista.
Victor Mendonça é autor de “Outro Olhar – Reflexões de um Autista” (ensaios, Manduruvá, 2015) e “Danielle, Asperger” (romance, Manduruvá, 2016). Selma Sueli Silva é jornalista e radialista. Em 2017, ela publicou a autobiografia “Minha Vida de trás para Frente” (Manduruvá), para processar o efeito da descoberta do autismo em sua vida. Desde então, atua ao lado do filho, e já levou outros adultos à descoberta de seu próprio diagnóstico.
“Dez Anos Depois” trata de assunto tão profundo quanto denso, na visão de mãe e filho, de forma leve e lúdica. Nesta entrevista ao jornalista Roberto Mendonça, Selma e Victor falam do novo livro e do trabalho em seu Mundo Asperger.
O que representa, afetivamente e profissionalmente, o projeto Mundo Asperger para vocês?
VICTOR: Sou defensor do jornalismo como função social e vejo no “Mundo Asperger” oportunidade de levar ao público informações de ponta sobre o Transtorno do Espectro Autista de maneira gratuita. Sigo uma filosofia de vida em que quero impactar positivamente as pessoas com o meu trabalho e deixar um legado à sociedade. É claro que é gostoso aparecer, ser influenciador digital, mas o “Mundo Asperger” para mim é muito mais do que isso. Eu penso que o trabalho de produção de conteúdo deve ser palco para a pessoa exercitar sua humanidade e transmiti-la às demais. E assim fui descobrindo um “fascinante universo do autismo”, com autistas, familiares, educadores e profissionais da área. O ‘Mundo Asperger’ não é apenas um canal sobre autismo, é um projeto sobre empatia, sobre essa troca gostosa que há no diálogo humano.
SELMA: O “Mundo Asperger” é uma chance de compartilhar vivências para que as famílias tenham acesso a mais informação, acolhimento e troca de experiências. O “fascinante mundo do autismo” me apresentou pessoas muito especiais que me fazem um ser humano melhor.
Quais foram as principais alegrias e decepções ao longo do desenvolvimento do projeto?
VICTOR: A principal alegria foi descobrir que eu e minha mãe não estamos sozinhos e que tem muita gente que se beneficia do nosso trabalho, sejam pessoas que convivem com o autismo mais diretamente ou profissionais da área. Sentir que fiz diferença em uma vida que seja já é maravilhoso, quanto mais saber que atinjo milhares de pessoas (os vídeos do YouTube somam quase um milhão de visualizações em agosto de 2018). Ainda assim, confesso que me expor não é fácil. A gente se torna alvo de julgamentos dos outros e, por mais que a maioria esmagadora da repercussão seja positiva, já cheguei a sofrer na pele a perseguição na Internet por parte de pessoas de dentro da comunidade autística. Isto dói, assim como a percepção de que ainda há muito a ser mudado na mentalidade das pessoas acerca do autismo, mas ao mesmo tempo é o que me dá força, junto ao carinho dos internautas, para seguir em frente e ter a consciência de que estou no caminho correto.
SELMA: A maior alegria é perceber que podíamos alcançar famílias de todo o mundo, levando mais informação para termos menos preconceitos. Eu não digo que chega a ser decepção, mas é um grande desafio expor sua vida na Internet, pois ficamos vulneráveis.
Quais são suas expectativas com relação ao livro “Dez Anos Depois”?
VICTOR: Este é o nosso livro mais ousado até aqui, porque embora a visão de autistas faça parte do nosso modus operandi, este livro tem um formato diferente que abarca uma série de temas além do autismo, como arte, política e espiritualidade. Também é a minha estreia como ilustrador. Com este livro quero mostrar que o autista não é só o rótulo que o diagnóstico impõe, e que com nosso olhar diferenciado podemos percorrer por temas contemporâneos e históricos. Acredito que “Dez Anos Depois” irá desmistificar muita coisa sobre as pessoas com TEA, porque mostra nossa capacidade (mesmo que aprendida, e não intuitiva) de lidar com metáforas, a criar um texto por meio de inferências, o que as pessoas geralmente não esperam de dois autistas. É um livro, portanto, que mostra a capacidade de aprendizado do autista e suas percepções acerca de diversos temas, inclusive o TEA. Na minha parte, por exemplo, há textos de contos completamente ficcionais. Isso foi um desafio para eu dar asas à imaginação e à simbologia.
SELMA: Construir uma obra literária, junto com meu filho, me provou que nosso potencial é imensurável. Chegar ao final dessa trajetória com o livro de textos, poesia e ilustrações me deixou feliz e orgulhosa.
Que preocupações vocês tiveram na hora de produzir e publicar o livro?
VICTOR: Embora o “Mundo Asperger” tenha uma produção incessante de um livro por ano, sempre escrevo muito mais do que publico. Então, quando vou produzir qualquer obra que seja, penso que ela deva fazer sentido, ter alguma representatividade para leitores, e não ser somente mais um livro. Eu queria que “Dez Anos Depois” fosse um livro diferente e que retratasse toda a nossa produção de 2008, quando recebi o meu diagnóstico, para cá, além de todo esse amadurecimento que se deu em minha vida e na de minha mãe como pessoas e escritores. Para o prefácio, pela primeira vez selecionei uma escritora que tinha familiaridade com o TEA (a ótima Andrea Viviana Taubman, de “O Menino Só” e “Não me toca, Seu Boboca”), e não um profissional da área de saúde. Queria mostrar que acima de tudo somos pessoas, profissionais e escritores, e que o autismo é apenas uma particularidade e uma identidade nossa capaz de tornar tudo ainda mais interessante.
SELMA: Temos uma editora muito boa. O responsável por ela é o pai do Victor, que sempre teve a palavra certa para os momentos de maior ansiedade. Isso diminuiu muito nossos impulsos frutos da ansiedade e não necessariamente da construção criativa.
Como foram feitas as ilustrações para o livro?
VICTOR: As ilustrações foram feitas por mim durante o processo de arteterapia. Fiz diversos tipos de desenhos até selecionar os que eram mais fortes para serem representados no livro. Agradeço ao meu editor que fez um belo trabalho com as ilustrações, em especial no miolo do livro. São criações abstratas que me permitiram, de maneira inédita para mim, retratar os universos da arte e neurodiversidade. Muitas foram feitas de maneira puramente emocional, como uma catarse, e isso está muito presente no livro, porque é uma obra que mostra nossa inquietação cerebral, o desejo de estar produzindo o tempo todo, já que autistas possuem cérebro hiperexcitado. A minha ideia era buscar profundidade como ilustrador e, pelos comentários das pessoas que compraram o livro na pré-venda, acredito estar conseguindo.
E os poemas? Representariam a parte mais afetiva, romântica e familiar do livro?
VICTOR: Os poemas, como definido pela autora do prefácio, são uma expedição à alma. Eu gosto de poemas porque eles não “fecham” um significado e abrem margem para diversas interpretações, ao mesmo tempo em que registram com certa fidelidade os sentimentos vivenciados nesses dez anos. Sem dúvida, os poemas são o ponto mais humano do livro, mostrando forças e fraquezas, o que marcou nesses dez anos, para o bem e para o mal. Por causa disso, eles têm um caráter de libertação.
SELMA: Os poemas foram uma espécie de catarse, de mudanças e transformações que eu vivi ao longo desses dez anos.
Os textos da Selma remetem ao rádio. Qual a diferença para o texto literário?
SELMA: Na realidade, eu tinha um espaço todo sábado durante os 15 anos que trabalhei na Rádio Itatiaia para criar um texto “destaque da semana” remetendo ao fato mais relevante acontecido durante aquela semana. Para fazer isso com leveza, optei por criar crônicas da notícia do cotidiano.
O que Victor considera sobre as críticas de cinema, algumas delas mais antigas?
VICTOR: As críticas foram selecionadas de acordo com a representatividade de cada filme para a época em que foi lançado, privilegiando os clássicos. Como sempre gosto de lembrar em minhas palestras, não sou apenas um escritor sobre TEA. O autismo é uma das nuances que mais me interessam, justamente porque é o meu foco é a complexidade das pessoas. Então, não vejo as críticas de cinema como uma mera análise técnica sobre o assunto, e sim como uma provocação que leva a diversas reflexões. Além de provocar um resgate histórico da sétima arte, é isto que proponho com meus textos sobre cinema: tirar o leitor da zona de conforto como consumidor de uma obra e colocá-lo como se estivesse no lugar dos personagens retratados.
Qual é a maior dificuldade que enfrentam para realizar seu trabalho?
VICTOR: Manter o portal “Mundo Asperger” funcionando exige investimento de tempo e dinheiro, o que não é tão simples para mim, por exemplo, que concilio o trabalho com os últimos períodos da faculdade.
SELMA: Pode parecer estranho o que eu vou dizer, mas, minha relação criativa ao lado de meu filho vai ao extremo de otimizar potencialidades ao outro e a conviver com impulsos, cobranças e ansiedade.
Em que medida vocês se sentem escritores, youtubers e ativistas?
VICTOR: Eu me considero um escritor acima de tudo; a base do meu aprendizado se dá pela leitura e pela escrita. Mas descobri na carreira de youtuber / apresentador uma paixão tão grande quanto a literatura, pois é uma função que me coloca num contato mais direto com os internautas e eu adoro essa troca com gente. Acredito que o ativismo vem como consequência de todo esse trabalho, embora eu e minha mãe já tenhamos participado de várias audiências visando a políticas públicas por autistas. Por muito tempo considerei o “ativismo” um termo um tanto quanto pesado, até internalizar que esta é, também, uma ferramenta importante na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e humanizada.
SELMA: Na realidade, somos comunicadores. Como tal, estabelecemos constante interação com nosso público por quaisquer canais de comunicação, tentando sempre utilizar um veículo que mais nos aproxime do nosso público. Por isso, nos sentimos plenos como escritores, youtubers e ativistas.
Como é serem mãe e filho autistas, vivendo e trabalhando juntos?
VICTOR: Minha mãe é uma pessoa maravilhosa, repleta de experiências em vida e profissão. Ao mesmo tempo, é desafiador viver e trabalhar com ela porque somos muito parecidos em alguns pontos de dificuldade, e algumas vezes ocorrem ruídos na comunicação. Meu psicólogo certa vez falou que, por ambos sermos autistas, nós dois temos uma rigidez na hora de lidar um com o outro, e por mais que estejamos abertos à argumentação, as discussões são por vezes “acaloradas”. Mas é uma delícia trabalhar com ela porque, apesar de ter muito mais tempo de carreira do que eu, minha mãe tem a mente bastante aberta. Ela me dá sustentação. Somos muito parceiros, amigos mesmo, e estamos sempre rindo e divertindo um com o outro.
SELMA: Eu tenho muita gratidão à vida que me possibilita interagir com meu filho nos seus variados aspectos. Ele me surpreende, me encanta a cada trabalho produzido, e hoje posso dizer: eu o amo e admiro para além de ele ser meu filho.
Vocês explicitam uma inteligência superior, um traço do asperger. O que pensam disso?
VICTOR: Eu acho que o mais importante não é ter um QI acima da média, mas sim o que você faz com a inteligência que tem. Inteligência demais pode trazer muito sofrimento. Gosto de jogar luz nas minhas habilidades para aproveitar o máximo do meu potencial.
SELMA: Na realidade, se é assim, nós nem percebemos. Nosso cotidiano é o resultado de nossa Revolução Humana e é com ela que temos compromisso. Fazemos isso de forma natural e fluida.
Quais são os próximos projetos da dupla? E os individuais?
VICTOR: Ano que vem lanço mais um livro, que será também o meu Trabalho de Conclusão de Curso, será uma obra jornalístico-acadêmica. Meu orientador é o professor de Comunicação com especialização em jornalismo científico Maurício Guilherme Silva Jr. Também estou envolvido em outros livros e projetos culturais com o meu pai e minha arte-terapeuta, Raquel Romano, mas não posso revelar muito por enquanto.
SELMA: Nós queremos ampliar o “Mundo Asperger”, levando mais informação à sociedade para gerar menos preconceito. Para isso, nosso desafio é transformar o “Mundo Asperger” em um projeto autossustentável para que ele continue seguindo. No âmbito individual, quero promover ações que levem à escola e ao mercado de trabalho informações e suporte para a inclusão da pessoa autista nas escolas e em seu trabalho.
Que providências mais urgentes devem ser tomadas no Brasil com relação aos autistas?
VICTOR: Mudar a mentalidade das pessoas. Enquanto olharmos para o autismo como uma doença e um mal a ser extirpado, colocá-lo como o único fruto do sofrimento das pessoas que têm o TEA, jamais vamos entender as reais necessidades dos autistas.
SELMA: O desafio maior é estabelecer políticas públicas que alcancem, de maneira digna, toda a sociedade, pois só assim vamos obter melhores resultados que, sem dúvida, trarão aumento da economia e revelação de muitos talentos.
O que podem dizer aos autistas como forma de incentivá-los no trabalho?
VICTOR: Acredito que jogar luz nas potencialidades e extrair o máximo do potencial de cada um, respeitando seu tempo e limites, é o caminho.
SELMA: Algo que parece óbvio se tornou, para mim, um lema que deve mover a vida do autista: você pode ser e estar onde você quiser.
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