Ela só quer, só pensa em namorar, ela é autista. Mas ela, na década de 80, sou eu. Nessa época, eu não sabia que era autista. Pensando bem, nem o CID e nem o DSM sabiam também. Ou seja, a Síndrome de Asperger, hoje autismo de grau leve, só entrou para o DSM-4, em 1994. Entretanto, a Selma autista existia e ninguém sabia. Muito menos eu. Hoje, eu, autista, continuo existindo e, no geral, pouca gente quer saber.
Mas, a verdade é que o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM) é a referência para médicos do mundo todo na classificação de diagnósticos de transtornos mentais. Somente, na quarta edição deste manual (DSM-4), lançada em 1994, o autismo e a Síndrome de Asperger foram classificados como distúrbios diferentes. Tudo passou a ser Transtorno do Espectro do Autismo em 2013.
O fato de a década de 80 não conhecer o autismo, grau leve, não evitou que eu, autista, existisse. Por isso, tive de me virar com minhas esquisitices. A primeira coisa que tive de dar um jeito, foi na sensação de ser sozinha no mundo. Como ter amigos me pareceu complicado, resolvi namorar. Santa ingenuidade!!!
Minha lógica era muito simples: todos à minha volta tinham vários amigos. Já namorado, só um. Bem mais fácil, não é mesmo? Não necessariamente, descobri em pouco tempo. Gente complica tudo. Numa relação afetiva, então, nem se fala. “Vá devagar, para não assustar.” “Não diga tudo o que pensa, para não se dar mal.” “Seja dependente, ou pelo menos finja ser.”
Definitivamente, essas regras não eram para mim. Não que eu não tivesse tentado. Tentei, tentei e tentei. Mas sempre me assustava com o retorno desse jeito exigido das namoradas. Por exemplo, nos anos 80, não havia nenhuma mulher virgem na minha sala. Tive vergonha e resolvi esconder que eu era. No entanto, mesmo que a maioria não fosse vigem, entre os rapazes, todas elas fingiam ser. Será por isso, que assustei vários caras, quando dizia a eles, com franqueza: “Que papo é esse que vamos ao motel só para conversar. Sei que lá é lugar para outro tipo de ação. Quer conversar? Pode falar, estou ouvindo.” Claro que o infeliz vazava.
Talvez por isso, atraí namorados estranhos. Quando relatava o papo para minha mãe, ela mal acreditava. Mais um exemplo: Meu namorado me buscava na faculdade, às sextas, de moto. Amava andar grudada nele, sentindo o vento no rosto.
Certa vez, fomos a uma pizzaria nos arredores da PUCMinas. Na tela de uma televisão, (que eu achava dispensável. Afinal, vamos a uma pizzaria para comer pizza, ora pois, pois!). Continuando, na tela da televisão, o grupo Kid Abelha se apresentava em um programa musical.
O meu namorado (esse foi paixão, viu?) me disse, de olhos grudados na Paula Toller: “Eu daria meu salário por uma noite com ela.” O quê??? Eu e ele não fazíamos isso e ele queria pagar para ela?” Olhei de rabo de olho, aquele mulherão, na tela, no auge do sucesso. Me senti minúscula e disparei: “Perda de tempo. Ela é artista e não puta.” Pronto falei. Mas, como sempre, levei a fama de impulsiva. E ele, era o quê, então? Que grosseria.
Aos 14 anos, namorei um colega de sala. Achava ele muito bonito. Ao conhecê-lo melhor, pensei: “Bonito e bobo.” Mas computei esse juízo de valores à minha pouca experiência com o sexo oposto, à época. (E hoje também, diga-se de passagem. Risos). O cara era do tipo pavão. Nosso relacionamento foi conflituoso, cheio de idas e vindas. Entretanto, um dia acabou. Será?
Não, afinal, a vida é cheia de ‘pegadinhas’. Assim, eu reencontrei o sujeito. Pai de família, casado, e continuava bonito aos meus olhos. Foi delicioso relembrar nossos encontros e desencontros. Até que veio a proposta ‘maldita’:
“Selma, eu estou casado e gosto de estar. Mas continuo sentindo muito carinho e atração por você. Vamos viver o que não vivemos na adolescência?” Oiii? Fiquei horrorizada. E devo ter demonstrado. Ele então, arrematou: “Pensa bem, você tem de aproveitar enquanto AINDA está jovem. É uma grande oportunidade. Você será um oásis para mim. E eu para você.”
Como? Será que ele se ouviu? Por que aquele sorriso indecifrável? Qual a graça? Pensei nos dois sentidos para oásis que eu conhecia:
2. Sentido figurado: coisa, local ou situação que, em um meio hostil ou numa sequência de situações desagradáveis, proporciona prazer. Não sou coisa, não sou local, muito menos situação. Estou num meio hostil? Não! Ele está? Talvez. Mas não tenho competência para paramédica. Vou ser garantia de prazer para ele, em meio a situações desagradáveis? Nunquinha.
Conclusão: Depois dizem que autista é que é sem noção. Eu, heim? Estou bem com meu cérebro neurodivergente, obrigada!
Texto de Selma Sueli da Silva
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