Ela não voltará. O luto das crianças órfãs por causa da covid. - O Mundo Autista
O Mundo Autista

Ela não voltará. O luto das crianças órfãs por causa da covid.

Adrianna Reis

Para além dos números assombrosos de mortes no Brasil, há histórias de vidas perdidas que deixam um rastro dolorido sobre os que ficaram para trás, os que sobreviveram.

A cada 13 mortes em decorrência da covid-19, uma criança (menor de 18 anos) perde um dos pais. Pesquisa publicada em 5 de abril pela Jama Pediatrics estima que cerca de 40.000 crianças, nos Estados Unidos, perderam um dos pais para covid-19, desde fevereiro de 2020. Três quartos dessas crianças eram adolescentes e um quarto eram crianças com menos de 10 anos.

No Brasil, não temos uma pesquisa epidemiológica desse tipo. O que percebemos são os impactos dos números de mortos entre parentes e conhecidos desde o início da pandemia. Todas as mortes registradas até agora, não foram eventos discretos, de baixo impacto. Ao contrário, em vez disso, cada uma delas repercutiu para fora do núcleo individual, deixando buracos em famílias, bairros e comunidades inteiras.

Cada buraco aberto afeta a vida de quem fica, especialmente, a vida de uma criança que perde o pai ou a mãe, repentinamente e ainda jovem. A perda súbita e imprevista pode levar ao luto traumático e, além de problemas na escola, traz um risco maior de doenças não intencionais, como depressão, ansiedade, comorbidades, inclusive o suicídio.

Devido ao isolamento forçado, essas crianças, muitas vezes, não vão conseguir se reunir com a família e amigos que normalmente forneceriam conforto e apoio nesse momento complicado. Estando ainda fora da escola, elas também ficam sem o apoio social de amigos, professores e conselheiros para ajudar a atravessar o luto.

Para ajudar essas crianças, precisamos saber quem elas são. A pesquisa da Jama pediatrics aponta a disparidade racial e podemos correlacionar esse dado com as questões de desigualdades raciais no Brasil. As crianças norte americanas pretas representam 20% das crianças enlutadas no pais, uma espécie de sobretaxa de luto que, em um mundo mais justo, aria inaceitável. A cidade de Belo Horizonte, segundo dados do IBGE, possui garis, faxineiros, e auxiliares de limpeza, profissões, notoriamente, prevalentes de pessoas negras, como 62% das pessoas internadas.

Fato é que, a morte súbita dos pais, como a que ocorre devido à COVID-19, traumatiza as crianças e deixa as famílias mal preparadas para enfrentar as consequências dessa tragédia. Muitos adultos acreditam que as crianças não entendem e não sentem a dor da perda. Não é bem assim, o que difere é que elas têm uma compreensão mais afetiva e seletiva sobre o fato. As crianças se utilizam mais de linguagem simples e objetiva. Por isso, evite mentir ou inventar histórias alegóricas para explicar a morte. Esteja por perto para ouvir as perguntas à medida que surgirem. O luto é um processo individual e por isso tem expressões e duração únicos para cada pessoa, inclusive a criança. Respeite esse processo. Permita que ela crie um rito para amenizar a saudade, como rever fotos e objetos ou rememorar as histórias da vida da pessoa que morreu.

Quando a criança perguntar que horas a mãe volta, a dor estará no fato de que ela não voltará. É importante refletirmos que o que gera mais sofrimento não é falar sobre a morte, e sim a própria morte. Perder algo ou alguém importante é uma das experiências mais dolorosas de uma vida! Não há um saber universal, mas construções individuais que nos preparam para esse momento. Muito mais importante que ter respostas, é construir redes de apoio institucionais, amparos financeiros e apoios afetivos que deixem os órfãos mais cuidados e, com isso, menos vulneráveis a vida futura.

Adrianna Reis

Adrianna Reis de Sá é psicóloga clínica e professora universitária, com mestrado em Bioética pela UnB – Universidade Federal de Brasília. É especialista em saúde mental e autismo. Tem como área de estudo questões de gênero e direitos humanos e é palestrante sobre temas como autismo feminino, direitos humanos e maternidade. Adrianna é mãe de três filhas neurodiversas, a mais velha a ativista Amanda Paschoal. Instagram: @drica.reis.au

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments