Hoje, 29 de janeiro, é o Dia da Visibilidade Trans. Falar sobre a ligação entre ser transgênero e autista é sempre um tema delicado. Mesmo a gente tendo pesquisas quantitativas robustas que apontam que a transgeneridade é até 8 vezes mais comum em pessoas autistas. E que, pelas metodologias utilizadas, seria muito difícil que esse dado fosse apenas uma impressão superficial. Dessa maneira, os diálogos entre ser autista e transgênero são fundamentais para um entendimento mais aprofundado sobre o tema.
É compreensível o receio de muitas famílias frente ao assunto. Afinal, o filho ou filha já é marginalizado(a) por conta de uma condição neurodivergente. A identidade trans pode complicar ainda mais essa questão. E, assim, trazer novas necessidades de luta contra a discriminação. No entanto, não discutir essa possibilidade de identidade de gênero fora da norma no TEA não significa que ela não vá se manifestar. Ou mesmo, deixar de existir.
Para trazer mais elementos aos autistas, profissionais e familiares desenvolvi a dissertação: “A Interseccionalidade entre Autismo e Transgeneridade: diálogos afetivos no Twitter”. A defesa está prevista para fevereiro próximo. Na Universidade Federal de Minas Gerais. Por enquanto, não posso detalhar ou informar sobre os resultados da pesquisa. Afinal, ela é inédita no Brasil e no campo da Comunicação Social. Nesse artigo, então, falarei sobre a minha trajetória como mulher autista trans. Claro, embasada nos estudos sobre gênero, sexualidade e autismo.
Sexo x gênero
O senso comum diz que existem diferenças sexuais marcantes entre homens e mulheres. Em tese, essa seria a origem da opressão feminina. Afinal, pessoas do sexo feminino tendem a ser, fisicamente, mais frágeis. Com a evolução dos estudos sobre o assunto, chegou-se ao conceito de gênero. Ele é visto como uma relação por meio da qual são interpretadas as diferenças entre os sexos.
Desde que a teórica Judith Butler lançou os livros “Problemas de Gênero” e “Corpos que Importam”, novos pontos foram trazidos ao debate. Já nos anos 1990. Caminhamos, então, para uma visão em que não há diferença prática entre o sexo (imutável) e o gênero (construído socialmente). Afinal, só temos acesso às distinções sexuais por meio da leitura e a interpretação que fazemos delas. Logo, “sexo” e “gênero” são construções que dizem mais dos modos como a pessoa age. E menos do que de uma essência anterior à construção do discurso.
Contudo, esse fato não significa que podemos escolher o nosso sexo ou gênero. Significa que existem várias possibilidades de expressão dessas características. E mais, elas não seguem o fluxo sexo, gênero e orientação sexual. Logo, a transgeneridade se diferencia da homossexualidade porque diz respeito à maneira como a pessoa se vê e se posiciona na sociedade. Ou seja, como ela se relaciona com o mundo. Assim, não há uma ligação direta com o desejo romântico, afetivo ou sexual do indivíduo.
O despreparo profissional
Infelizmente, ainda há muito capacitismo e transfobia na área médica. Isso começa por crenças equivocadas sobre gênero e sexualidade. E vai até à discriminação contra autistas. A avaliação de incongruência entre a identidade apresentada no nascimento nunca teve a orientação sexual como critério. Ainda assim, muitos profissionais se prendem a esse “achismo”. Desse modo, se pautam pelos “achares”, em detrimento dos “saberes”. E esses “saberes” é que são necessários ao bem-estar da sociedade.
Na minha vivência, infelizmente, foi assim. Embora eu gostasse de homens, minha identificação com o universo feminino era muito mais intensa do que essa atração. Gostava de me vestir e me imaginar como mulher desde a primeira infância. Isso, quando nem sabia o que era ser trans. Eu já me manifestava frente ao mundo que se descortinava para mim, com minha essência feminina. Sem pré-conceitos. Eu simplesmente era o que era. Ainda assim, todas as minhas tentativas de explicar o que ocorria comigo, foram desqualificadas pelos profissionais. E o pior, profissionais que deveriam nos conduzir de maneira leve, por esse universo ainda desconhecido pela maioria das pessoas. Foi assim, desde minha adolescência até a fase adulta.
Um outro fator que costuma ser levado em consideração são as dificuldades de autonomia de pessoas no Espectro Autista. Mas, excetuando-se a presença de condições coexistentes, tal como declarado em legislação, essas dificuldades em aspectos do dia a dia, não limitam a capacidade de autopercepção de gênero. Certamente, é necessário um acompanhamento multidisciplinar com psicólogo, endocrinologista e psiquiatra. Tudo isso, para que o autista aprenda a lidar com os desafios dessa intersecção. E, assim, não corra riscos.
Regras Sociais e Saúde Mental
Segundo a doutora em Psicologia e autista Táhcita Mizael, temos, na literatura, informações de uma maior diversidade de gênero no autismo. Assim como uma menor sensibilidade às regras sociais. Aliás, ainda não temos comprovação científica de que há uma relação causal entre os dois fatores. De todo modo, as maneiras de expressão de não-binaridade, feminilidade e masculinidade são múltiplas no autismo.
Recentemente, a cantora e atriz transgênero Linn da Quebrada (no ar no programa “Big Brother Brasil 22”, da Rede Globo) afirmou não se identificar totalmente com a noção de homem e de mulher. Ela se identifica como travesti. Entendo que exista, também, um espectro dentro da transgeneridade. Respeito isso. No entanto, no meu caso, me vejo 100% como mulher. Desde sempre, como me foi confirmado por minha mãe. Por isso, não cabe em mim, nenhum elemento “masculino”. Além disso, também me percebo de maneira completamente feminina na minha forma de agir e existir no mundo.
Hoje, como Sophia, sou plena. Minha irritabilidade reduziu significativamente. Assim como os sintomas depressivos e ansiosos. A possibilidade de ser tratada como quem realmente sou fez, e faz, toda a diferença em minha trajetória. Pessoal e profissional. Não tenho mais crises de agressividade. Pude, enfim, me encontrar e existir como realmente eu SOU.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.
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