Selma Sueli Silva e doutora Kelly Robis
Selma Sueli Silva e a psiquiatra Kelly Robis conversam sobre as dificuldades na busca pelo diagnóstico em adultos.
Selma Sueli Silva: Seja muito bem-vindo ao nosso fascinante mundo do autismo! Um mundo que até há pouco tempo, as pessoas achavam que acabava na infância. Pelo menos é o que parece já que sobre o adolescente e o adulto pouco se fala. Por isso, muitos internautas me perguntam sobre quem me diagnosticou. A dra. Giovana Mol (psiquiatra e psicogeriatra), que me diagnosticou, da clínica Allerevita, que é composta por uma equipe de alto nível, não está atendendo novos pacientes. Na equipe, quem atende a casos novos é a doutora Kelly Robis,
E é com ela que eu converso nesta entrevista.
Dra. Kelly, quando eu tive o meu diagnóstico, há quatro anos eu fiquei oito meses tentando digerir tudo isso. Até escrevi o livro “Minha vida de trás pra frente”. Mas, aqui, neste espaço descobri que igual ao meu, existem muitos outros casos de autistas adultos não diagnosticados. Tem os autistas que buscam o diagnóstico e não conseguem e tem aqueles que são diagnosticados. Por isso, escrevi também o livro “Camaleônicos”, que é o depoimento de 10 autistas adultos falando sobre a vida do autista adulto. Eu tive coragem de escrever esse livro porque o Victor tinha escrito o livro Neurodivergentes, que fala do autismo em vários aspectos: o autismo no feminino, inteligência e neurodiversidade, autismo na atualidade, o autismo todo na contemporaneidade, um livro muito interessante.
E é sobre isso que a gente vai falar: por quê é tão difícil esse diagnóstico dra Kelly?
Dra. Kelly Robis: Eu acredito que o diagnóstico é difícil porque o adulto já se adaptou tanto, já tentou tanto ser igual ao neurotípico que as suas características construídas como estratégia confundem a maioria das pessoas. Então, as pessoas não conseguem apontar o diagnóstico e nem acreditam nele.
Dessa forma, quando um adulto recebe o diagnóstico, muitas vezes, ele demora para assimilar, porque já se adaptou tanto, já tentou tanto ser “normal”, que esse adulto acredita mesmo que talvez o diagnóstico esteja errado. Outro ponto a ser considerado é a mudança no diagnóstico, porque hoje a gente acredita muito mais no espectro autista que no autismo enrijecido que a gente acreditava há 20 anos, 30 anos.
Até hoje, existe aquele estigma de que o autista, quando se torna adulto não vai conseguir fazer nada, será dependente. Tudo bobagem desde sempre, mas o que a gente sabe é que hoje, o autismo é extremamente heterogêneo e cada um tem a sua habilidade e a sua capacidade de desenvolver o que tanto sonha e o que tanto quer. Então, eu acredito que são esses dois motivos: os critérios diagnósticos, que mudaram e o estigma, que no passado era muito mais intenso, a ponto de ninguém acreditar que uma pessoa que olha no olho é autista, o que é um grande absurdo também. Além da própria questão da adaptação: o autista tem uma grande capacidade de adaptação que, do ponto de vista cognitivo, muitas vezes, é até superior a outras pessoas.
Eu ouço muito de autistas dizendo que na verdade, a dificuldade de adaptação é de neurodivergentes. Eles argumentam o seguinte: “eu me adapto muito mais a determinadas coisas do que a maioria das pessoas”. Só que a via de adaptação é diferente. Eu costumo falar que, nos neurotípicos ela é muito mais emocional ou muito mais instintiva. Já o autista, ele se adapta muito mais, porém, por uma via cognitiva, uma vez que essa pessoa consegue entender os mecanismos relacionados ao espectro, entende os mecanismos relacionados ao próprio universo. Eu chamo isso de virar o disco. O autista quando “vira o disco”, ele se adapta muito bem, só que essa via é muito mais cognitiva do que emocional.
Selma Sueli Silva: É super verdade. Antes do diagnóstico, eu me adaptava mas era muito sofrido, pois eu queria ser igual aos outros. Depois do diagnóstico, eu me adapto de maneira lógica. “Ok, a regra é essa? Então, vamos seguir e vou tentar assim e assim”. Por exemplo, eu sou jornalista, fui assessora de comunicação por muito tempo. Toda vez que entrava em contato com uma apresentadora de televisão, conversando normalmente e, de repente, ao entrar no ar, impostava um pouco mais a voz e passava a falar o texto como se estivesse fazendo isso há algum tempo. Eu observei isso umas duas ou três vezes e pensei: “eu quero isso”. E, quando percebi, eu estava repetindo, copiando, porque foi um aprendizado de forma lógica, do tipo: “funciona assim, essa é a regra? Então é assim que vou fazer.”
Eu fiquei muito emocionada por esses dias porque um autista homem disse que estava cansado de sofrer em busca do diagnóstico. Ele já tinha coletado uma série de informações colocado tudo numa mochila para apresentar ao médico. Ele me contou que viu o depoimento de que sou autista e pensou, que ele era assim como eu e que não ia desistir. Iria provar ao médico que era autista. Mas antes da consulta, ele viu um vídeo no canal que falava assim: “Gente nenhum médico vai gostar se você chegar dizendo que já pesquisou e que tem certeza de que é autista. Ao médico caberia somente dar o “ok” na sua pesquisa. Isso aí vocês hão de convir que, embora os autistas tenham facilidade com pesquisas de seu hiperfoco, pode ser ofensivo para o profissional e ele pode achar, inclusive, que vocês estão querendo convencê-lo desse diagnóstico”.
Aí depois, eu tive o retorno de que isso mudou a vida dele, que ele teve o cuidado de fazer esses apontamentos e sequer mexeu na tal mochila (rs). O diagnóstico veio e ele agradeceu porque, sem conhecê-lo, eu tinha ajudado bastante. Dra Kelly, o que você diria a pessoas que tem essa desconfiança, que estudam e que estão sofrendo, pensando no que elas devem fazer. Isso em dois casos: uma pessoa extremamente pobre, que não tem condição de procurar ajuda de um profissional particular e outro, a pessoa que tem condição de procurar esse profissional: o que ela deve fazer?
Dra. Kelly Robis: Eu gosto de sugerir em primeiro lugar, para que a pessoa considere sempre que existem alternativas. O que que eu quero dizer com isso: quando a pessoa se enrijece em uma possibilidade diagnóstica, o diagnóstico diferencial pode ficar difícil. E eu costumo falar que para eu poder dar um diagnóstico, eu tenho que eliminar todos os outros diagnósticos para eu dar um diagnóstico bem feito. Até porque a repercussão é grande na vida do paciente, do ponto de vista da intervenção adaptativa. Então, eu sempre peço para que a pessoa se enxergue como uma pessoa como outra qualquer. O paciente é uma pessoa e não apenas seus sintomas. Para procurar um profissional, você não precisa listar sintomas. Você tem que listar como é a sua vida, o que você sofre, o que que para você é importante, o que você quer que mude, o que você não quer que mude e por aí vai.
Porque, quando a pessoa chega com uma lista de critérios diagnósticos, na minha visão, essa lista é vazia, porque qual repercussão que a pessoa tem na própria vida diante daquela lista? Por exemplo: já aconteceu de me procurarem com uma lista de critérios diagnósticos, mas quando eu fui perguntar o que que realmente incomodava a pessoa, era uma coisa que não estava na lista. E não estava na lista porque não atendia os critérios diagnósticos do autismo.
Então, a meu ver, é importante que a pessoa relate quem ela é, o que para ela traz sofrimento, o que para ela é importante que se mude ou não e o quanto ela está satisfeita ou não diante daquilo. Eu acho que, quando a pessoa se abre como uma pessoa e não como uma lista de critérios diagnósticos, o diagnóstico é mais fácil e a intervenção de aconselhamentos para melhoras de bem-estar e felicidade é muito mais efetiva.
E, um outro ponto que eu costumo colocar em relação a pessoas que tenham a suspeita diagnóstica, mas que às vezes não tenham a condição de procurar um psiquiatra ou um profissional, a sugestão que eu dou é a seguinte: talvez, essa história de diagnóstico enrijecido não seja tão importante quanto as medidas adaptativas. Por exemplo, tem pessoas que vivem a vida sem o diagnóstico, mas quando elas criam estratégias adaptativas não com foco no diagnóstico, mas com foco no problema, com o foco no que traz sofrimento, às vezes, o diagnóstico nem é tão necessário assim. Então, a pessoa tenta buscar alternativas que possam ajudar no seu bem estar e isso é o que muda a vida dela. Talvez ela deva buscar outro profissional que não o psiquiatra, até porque o tratamento do espectro autista é quase sempre é multidisciplinar. Então ela terá um tratamento em termos de ter uma vida com menos sofrimento e não de conseguir a remissão de sintomas. Pode ser uma atividade física, alimentação adequada, tudo que possa promover bem-estar. Eu acredito que tenha um bom efeito, independente do diagnóstico ou não. Para quem tem ou não tem condições de buscar o diagnóstico específico, essa pessoa não deve se ver como uma lista de diagnósticos, uma lista diagnostica, um objeto a ser dissecado. Mas, que ela se veja como uma pessoa que tem as suas felicidades, as suas frustrações e que tem como objetivo principal buscar felicidade bem- estar como qualquer ser humano.
Selma Sueli Silva: Tem casos e casos. No meu caso, eu percebi que eu havia conseguido muita coisa, que eu tinha uma vida vitoriosa, mas tudo a custa de muito sofrimento. Hoje, quando eu olho para trás, eu percebo que esse sofrimento era terrível. Só que o sofrimento é solitário. Se você não expressa, ele não incomoda ninguém. Ai, está ok. Só que, o meu jeito começou a incomodar quem vive mais junto de mim, que é meu filho e, de fato, ele estava completamente certo, porque, em alguns momentos, eu relaxava daquelas coisas, daquela pressão que eu tinha lá fora e ele sofria mais comigo, em casa. Ele sempre diz: “Nossa mamãe, você me levou a descobrir o meu diagnóstico e eu levei você a descobrir o seu”.
Num próximo bate papo, dra Kelly*, você vai falar que a vida é maior do que o diagnóstico.
Contato:
*instagram: @dra.kellyrobis
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