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Desconstruindo tabus sobre a maternidade atípica

Selma Sueli Silva e Mariana Rosa

Em conversa com Selma Sueli Silva, a jornalista Mariana Rosa fala sobre a jornada inesperada e surpreendente que começou com a chegada de Alice.

Selma Sueli Silva: A Mariana é uma pessoa que eu admiro muito e vai contar a história dela para vocês. Ela é jornalista, daquele jornalismo que fala do cotidiano, com crônicas e informação, e que nos convida, sempre, à reflexão. Sou super fã de você, Mariana Rosa. Muito prazer em ter você aqui.

Mariana Rosa: O prazer é todo meu, Selma. A admiração é recíproca, você sabe o quanto que eu admiro o seu trabalho, admiro você, então estou muito honrada e feliz em estar aqui hoje.

Selma Sueli: Os nossos internautas Mariana, tenho certeza que estão curiosos para conhecer você. Porque, tem o porquê do meu convite a você, além de tudo o que eu já falei. Você casou, teve o projeto do filho e aí veio o filho. Vamos falar um pouco dessa questão de ser mãe: como é que foi a experiência para você?

Mariana Rosa: Eu sempre quis ser mãe. Era um projeto meu mesmo, desde sempre. Sei lá desde quando, era um desejo e eu me organizei, me planejei para isso. Foi uma gestação planejada, muito desejada, em um momento de vida estável, tudo teoricamente caminhando nos conformes. Eu sou trombofílica, tenho trombofilia, então, eu já sabia que seria uma gestação de risco, mas eu fazia os acompanhamentos. Procurei uma obstetra especializada nisso, procurei um reumatologista, que também me acompanhou. Então, eu estava bem amparada e segui o processo.

Durante a gestação, eu tive uma sinusite, quando eu estava com 17 semanas e eu tossi muito, mas muito mesmo. É uma fase em que você não pode se medicar com antibiótico, então eu realmente fiquei mal, tossindo muito. Eu tinha um mioma fora do útero, que eles chamam de mioma perpendicular. Esse mioma torceu e destruiu parcialmente o meu intestino e a minha bexiga. Eu não conseguia evacuar, eu não conseguia fazer xixi e aí, dessa gestação que caminhava tudo conforme o planejado, eu fui parar em uma mesa de cirurgia, correndo risco de vida. Lembro do médico dizendo que a prioridade era primeiro me salvar, depois o meu útero, depois salvar a minha filha que, a essa altura, tinha até nome, que era Alice.

E assim aconteceu: eu fiz a cirurgia. Foi uma cirurgia difícil, porque o corte foi no mesmo lugar da cesárea, um pouco maior. A minha barriga foi crescendo ao mesmo tempo que o corte cicatrizava, enfim, um processo difícil. E como eu sou trombofílica, eu fico imaginando o que deve ter sido para o meu organismo esse conflito: tomar anticoagulante e, ao mesmo tempo, produzir trombo* para poder cicatrizar aquele corte tremendo. Depois da cirurgia, eu fiquei em repouso e teoricamente, as coisas voltariam ao seu curso, mas não voltaram. Eu comecei a ter uma série de complicações, e isso culminou no parto prematuro. Quando eu estava com 29 semanas de gestação, nasceu a Alice

Selma Sueli Silva: Vinte e nove semanas?

Mariana Rosa: Vinte e nove. Ela nasceu muito miudinha, com menos de um quilo e 31 centímetros, do tamanho de uma régua. Ela ficou 145 dias na UTI neonatal, foi um período bastante conturbado na minha vida, na vida dela, do pai dela e de todas as pessoas que já esperavam por ela. Teve várias complicações nesse período. As mais relevantes: cinco infecções, sendo que duas, generalizadas, ela ficou entubada por mais de 60 dias. Teve hemorragia cerebral, teve hemorragia pulmonar e quando a Alice estava com 40 dias de vida, ela teve uma parada cardiorrespiratória e que durou 26 minutos. Foi esse o fator mais determinante para a condição de ser uma criança com paralisia cerebral.

Hoje, ela está com seis anos e vai fazer sete em agosto. Ela não anda, não fala, não sustenta a cabeça, precisa de apoio para todas as atividades cotidianas que ela intenta fazer. Além da paralisia cerebral, ela tem epilepsia de difícil controle. Ela já chegou a ter 70 convulsões em um único dia e ela também tem baixa adesão e tem disfagia, que é uma dificuldade de coordernar deglutição, respiração e mastigação. Essas são as características de saúde, vamos dizer assim, da Alice. Mas a Alice é muito mais do que isso e eu fui descobrindo isso aos poucos depois.

Lógico que o primeiro ano é um baque. Essa rotina de UTI deixa a gente em carne viva, é uma experiência muito atravessadora, muito forte, muito intensa em que a gente vive o limiar da vida de uma maneira muito, mas muito forte. Esse período foi difícil, depois, fiquei um período ainda em sobressalto, como se pudesse acontecer alguma coisa com ela a qualquer momento, como se a gente não pudesse sair daquela vigília. Isso tudo levou um tempo para serenar e, ao mesmo tempo, a gente ainda sofre as pressões da sociedade. Os médicos dizendo que a gente tinha que correr contra o tempo para fazer a tal chamada intervenção precoce

, porque eu tinha que aproveitar a plasticidade cerebral. Aí toca a procurar fisioterapia, terapia ocupacional e, às vezes, a Alice ia para as sessões dormindo, porque era um bebê. Foi um ano, assim, caótico. No primeiro ano de vida dela só tem foto em hospital e em clínica, não tem foto da Alice na vida.

Até que me caiu essa ficha, de que ela não precisava passar por isso, que não era ela que precisava se ajustar, se enquadrar, se desenvolver de acordo com o script que alguém definiu para ela. É o mundo que precisa ser capaz de abraçar toda a nossa potencialidade, toda a diversidade humana. O meu foco tinha que estar nisso e não nela. Óbvio que as terapias e todas as intervenções de saúde são importantes para garantir a qualidade de vida. Eu não estou pregando de modo nenhum, o contrário disso. O que estou dizendo é que, o equilíbrio, que às vezes fica tão frágil que as pessoas acham que é isso, essa correria. Mas viver assim rouba a infância: a criança vive em terapia, vive em médico, porque é como se ela tivesse que alcançar uma determinada função para ser uma merecedora de algo que a gente nem sabe o que é.

A gente é quem tem que encontrar esse equilíbrio: cuidar para que a criança tenha as ofertas de terapia que são importantes para que ela se desenvolva em equilíbrio sem esquecer de todas as outras ofertas que também são fundamentais para desenvolvimento infantil, que são o convívio com a família, o brincar sem nenhuma função pré-determinada, estar em contato com a natureza, com os amigos, ir para a escola, isso tudo tem que fazer parte da vida da Alice.

A partir daí, a gente foi entendendo, a vida foi se encaixando, foi ficando mais leve, foi ficando melhor . E a gente foi acomodando essa novidade que foi a chegada da Alice. Então, eu diria que a Alice não foi a filha que de fato eu idealizei, porque o meu repertório era muito empobrecido. A gente não pensa na possibilidade de ter filhos dessa e daquela maneira. A gente vem com aquilo pré-determinado e esse filho ideal, na verdade, ele não existe. Existem os filhos que vêm para a gente. Então, eu posso dizer que hoje ela não é o que eu imaginei porque ela é muito melhor. E que bom que ela é muito melhor, que ela me surpreendeu de tantas maneiras e pode ampliar a minha visão de mundo. Ela me ajudou a tomar consciência de aspectos tão importantes e de privilégios que a gente tem. Eu aprendi que a gente tem que assumir a responsabilidade diante do mundo, diante da vida. Eu acho que, nesse ponto a gente tem trajetórias coincidentes, não é Selma? Nesse processo de ir assimilando, compreendendo.

Selma Sueli Silva: Sim, temos. Eu descobri que o Victor é o meu ‘filho perfeito’, do jeito que ele é. Porque a perfeição está em a gente ter esse filho e no aprendizado que ele (e todos os filho) nos traz. Você, Mariana, é uma mãe plenamente feliz?

Mariana Rosa: Eu sou. Claro que a gente não é o tempo todo feliz, isso não existe. Mas, a felicidade, como diz o poeta, ela se dá em horinhas de descuido. Mas, não em razão da Alice, mas em razão de que a maternidade é um exercício difícil, árduo.

Selma Sueli Silva : Isso! Para todo mundo.

Mariana Rosa: Mas eu sou feliz, muito feliz.

Selma Sueli Silva: Pois é minha gente. Então, é isso que você vai acompanhar, de quinze em quinze dias aqui, toda a terça-feira, comigo e com a Mariana. Essa última pergunta é preparação para o próximo papo, que será sobre o capacitismo: o que é isso? Siga com a gente.

Trombo:* Trombos são coágulos de sangue em vasos que provocam obstruções. A trombofilia é uma doença que causa uma alteração na capacidade de coagulação sanguínea, gerando uma predisposição para o desenvolvimento de trombos, processo denominado trombose, o que aumenta o risco de obstrução dos vasos sanguíneos. A causa da trombofilia está relacionada a uma deficiência na ação das proteínas, que têm a função de atuar na coagulação do sangue.

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