Precisamos falar sobre o caso Letícia Sabatella e as atrizes autistas. Isso porque, recentemente, a atriz Letícia Sabatella recebeu o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) depois de a filha receber a mesma identificação. Dessa forma, a Letícia é uma atriz famosa por diversos filmes, novelas e séries de TV. Por exemplo, ela teve papéis de destaque em “Páginas da Vida” (2006), “Caminho das Índias” (2009) e “Nos Tempos do Imperador” (2023). Além disso, a intérprete ostenta um Troféu APCA no currículo pela terceira temporada de “Sessão de Terapia” (2014).
Assim, Letícia Sabatella recebeu o diagnóstico aos mais de cinquenta anos de idade. Portanto, é um caso parecido do que ocorreu com a minha mãe, a escritora e radialista Selma Sueli Silva. E, não diferentemente do que aconteceu com mamãe, a atriz foi bastante atacada. Esses ataques vieram de membros da comunidade do autismo que questionaram, por exemplo: “como uma artista pode ser atriz, se ela não tem neurônio espelho, então não conseguem copiar fisionomias nem criar expressões fictícias”?
Por isso, é importante esclarecer que o autismo é um espectro. Portanto, há várias nuances de como ele pode se manifestar. E sendo uma síndrome, ou um conjunto de sintomas, ninguém vai ter todas as características. Claro que há um elo central. Porém, a maneira como o autismo afeta o comportamento e a comunicação de cada pessoa varia muito.
Então, no caso da Letícia Sabatella, acontece o mesmo que com muitos outros atores famosos que foram diagnosticados autistas. Por exemplo, este é o caso de Daryl Hannah, que entregou ao público ótimas interpretações em clássicos como “Splash: Uma Sereia em Minha Vida” (1984) e “Kill Bill” (2003). Também há o exemplo de Anthony Hopkins, que venceu o Oscar de Melhor Ator duas vezes. Ou seja, ele ganhou o principal prêmio de atuação do mundo pelos filmes “O Silêncio dos Inocentes” (1991) e “Meu Pai” (2021).
Daí, algumas pessoas podem se questionar: como um autista pode atuar tão bem a ponto de justificar um feito tão raro? Gente, autismo não é tão incomum em atores, não. E quem apresenta a perspectiva de questionar o diagnóstico desses artistas ignora a noção de camuflagem social, também conhecida como masking. Ou seja, autistas com linguagem e habilidades cognitivas mais preservadas em geral têm maior facilidade de aprender com as situações cotidianas. Com isso, conseguem assimilar e fixar melhor a maneira como vão se portar em sociedade.
Essa camuflagem se dá muito por comportamentos de cópia. Assim, autistas percebem que determinada atitude não funcionou em dado contexto e passam a hiperfocal em gestos e falas de pessoas neurotípicas. Então, eles transformam essa observação em aprendizado e constroem o próprio repertório, que pode ser aplicado em uma construção fictícia de personagem ou até no dia a dia. Portanto, o masking é muito comum em autistas de diversas áreas e profissões.
Dessa forma, a gente se baseia nos outros para criar nossa própria comunicação. Isso é exatamente o que uma atriz faz. Além disso, o teatro pode ser uma válvula de escape para os sofrimentos do dia a dia. Então, essa questão da banalização do autismo não se aplica aqui. Afinal, apenas a pessoa autista conhece os próprios desafios na interação com a sociedade.
Então, pelo que a Letícia Sabatella falou, ela passou por diversas situações desafiadoras da escola ao mercado de trabalho. Assim, um exemplo disso é a questão da ingenuidade, que não tem a ver com uma pureza estereotipada. Porém, ela está ligada à falta de noção de regras sociais que tornam o viver e o conviver um desafio muito mais intenso e complexo. Dessa forma, é muito bom saber que ela está feliz e viva para contar a própria história. Afinal, o diagnóstico tardio é mais comum em mulheres autistas pela maior habilidade em camuflar sintomas.
Sophia Mendonça é uma jornalista, escritora e pesquisadora brasileira. É mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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