Filha: Foi um longo caminho até chegarmos aqui. Tantas frentes de enfrentamento que, confesso, depois de quase 16 anos do seu diagnóstico, sinto-me muito cansada. Aliás, ainda teve meu próprio diagnóstico, vindo algum tempo depois do seu. Agora são 8 anos em que somos mãe autista e filha autista. Se antes não foi fácil administrar seu diagnóstico – um norte que nos direcionou para tantas descobertas, depois foram dois diagnósticos a serem administrados, fora uma vida sobrevivente mas marcada por perdas, medos e limitações. Tudo isso, guardado a sete chaves, já que eu não sabia de meu diagnóstico e o que a vida exige da gente é coragem.
Não que eu queira disputar perdas ou sofrimento. Isso não é motivo de disputa e sim de enfrentamento. Ao contrário, vivo de contar vitórias. Cada uma, por menor que seja, me importa. Penso que fiquei viciada em vencer, em avançar onde tantos recuam. Porém, me saber autista, me levou a me ver em algumas fases de sua vida. De “re-Sentir” muita coisa que havia deixado pelo caminho, pois me pesava nos ombros. E eu precisava continuar a caminhar.
São gatilhos sabe? Gatilhos que me levam a sofrimentos que você intui. Logo, são gatilhos para você também e isso me dói no âmago da alma. Hoje, enfrento também o etarismo que quase me empurra a viver em letargia, para que você viva plenamente. Se houver movimentos meus, que sejam para impulsionar você. Caramba, eu nunca acreditei no lado positivo da competição. Entendo bem a parceria, a cooperação.
Dessa forma, me sufocam os apagamentos de minha história passada e até a daquela que poderia vir a ser construída. Dá licença para a juventude passar – é o que esperam. Entretanto, por que não trilharmos juntas, na famosa coeducação de gerações? Há tanto que se aprender e ganhar com a ousadia da juventude aliada à bagagem do experiente.
Hoje, deixei para trás a referência de um espaço geográfico que transito desde que nasci, há 60 anos, e ainda assim, pouco conheço. Mas me ajeitei nele para me sentir segura. Afinal, tive de mudar, pois foi preciso estar com você. Uma mãe jamais vai se descuidar da saúde e alimentação de sua menina – mesmo que ela esteja próxima dos 30 anos. Portanto, dividindo um espaço menor com você, numa cidade muito longe da nossa, é natural que tudo seja mais desafiador. Mas preciso que você entenda:
Não quero mais ser a mãe que repete, à exaustão, a necessidade da execução de algumas ações até que elas virem hábitos. Já é tempo de entender que numa casa, não existe quem bagunça e quem arruma. Uma relação assim, não se estabilizará nunca. Cobrar a divisão de tarefas, não é, de forma alguma, brigar por um banheiro antes arrumado e, agora, todo molhado. É sim, ponderar sobre o trabalho do outro e a nossa responsabilidade em mantê-lo, quando dividimos um lar e não tão somente uma casa.
Não quero que sua alimentação, seja um dever somente meu. É preciso que você demonstre vontade e aprenda cozinhar. Isso é autonomia. Assim, como cuidar da saúde de seu corpo também é. Quais remédios deve tomar, e a que horas. Sempre estarei a seu lado para apoiar você. Mas não desejo que eu precise fazer nada disso por você.
Depois de certa idade, a mãe não tem obrigação em relação aos filhos. É quando podemos descobrir a beleza da parceria, do apoio, do porto seguro. Então, a autonomia financeira torna-se fundamental. Sei que é difícil. Até hoje, tenho meus desafios. Escolhi uma profissão que me faz feliz mas que não é bem remunerada no Brasil. Assim, encontro-me abaixo da linha financeira até de minha própria família. Mas o que pode não ser entendido é que não batalhei para acumular ‘coisas’, mas sim para ser feliz. E tudo que tenho me torna extremamente feliz, o resto seria excedente que não seria aproveitado agora e talvez, nem por mim.
Não me importo se gostaria de fazer uma plástica aqui e ali, e não tenho grana. Na verdade, gostaria de apresentar um ar menos cansado. Já ficar mais bonita diz respeito ao culto à uma estética imposta. Tô fora. Vendi meu carro. E daí, se hoje consigo me deslocar a pé ou de uber conforme o lugar de meu destino, dentro dessa nova cidade?
Porém, como autista, preciso de previsão, para alcançar a segurança, tão importante quanto o ar que respiro. O difícil não é ganhar um salário menor. O que torna a vida impossível,
é não ter competência para gerenciar o que se recebe. Aprendi isso há muito. Foi preciso já que minha tendência é adquirir coisas pelo valor que tem para mim e não necessariamente, pelo preço. Minha lógica, seria prato cheio para oportunistas, por isso, tive de recuar. Se algo era importante para mim, aumentavam o preço para aumentar o ganho próprio, valendo-se minha fragilidade.É assim, até por aqui, no Mundo Autista. Quantas empresas, quantas escolas, quantas pessoas se aproveitaram de nosso profundo desejo de ajudar as famílias, os autistas e até mesmo a sociedade a conhecerem mais sobre a diversidade e inclusão? Empresas, escolas, pessoas que podiam pagar por nossa consultoria e diziam que nosso conhecimento era maravilhoso e que a “conversa”, ou várias delas, havia sido muito proveitosa. Que não pagaram por nossos livros, nossas palestras, nossos treinamentos, nossos cursos, nosso conteúdo quando poderiam fazê-lo, com folga.
Afinal, precisamos nos sustentar e sustentar nosso querido Mundo Autista para que possamos continuar levando mais conhecimento para diminuir o preconceito. Recebendo de quem pode pagar, podemos manter nossa cota social, sem empenhar nossa renda pessoal, como tem acontecido
Entende porque é importante ter independência e autonomia? É o que nos garante cuidar do tesouro do corpo – para que tenhamos saúde para continuar com nossa missão. Cuidar também do tesouro do cofre – para que tenhamos como estar ao lado daqueles que pouco ou nada têm para, finalmente, ter a paz para cuidar do mais importante dos três tesouros, o tesouro do coração. É esse último que nos garantirá ser feliz e contribuir para a felicidade do outro.
Enfim, filha querida, não sou uma mãe chata em essência. Por vezes, a sua dificuldade evidencia a minha própria. E então, já sabe né? Não uso, em momentos assim, as melhores palavras. Minha comunicação pode se tornar inclusive, uma comunicação violenta e tão destruidora quanto inútil. Sou autista, caramba, tenho algumas limitações. E preciso de sua parceria e compreensão para entender que hoje não posso cuidar de você sem que me perca um pouco de mim mesma. O que ofereço a você, é minha parceria, minha cooperação e sempre um ombro para você pousar sua cabeça, quando ela se fizer cansada por tantos desafios.
Tabus sobre a maternidade atípica e a identidade de gênero tem como base as anotações nos cadernos de terapia de Selma Sueli Silva, que é uma jornalista, autista e mãe da pesquisadora e comunicadora Sophia Mendonça. Desde 2015, a dupla apresenta o Mundo Autista, o mais antigo canal de autistas em atividade no YouTube brasileiro. O livro é protagonizado por duas mulheres que representam a persona das autoras, mas conta a história de muita gente além delas. Em uma estrutura que se utiliza de personagens fictícios baseados em pessoas e situações reais, a obra ajuda a desenvolver habilidades para lidar com crises, meltdowns e colapsos mentais. Por meio das aplicações e interações com profissionais da psicologia e psiquiatria, a dupla de mulheres com deficiência e neurodivergente mostra como transformou a vivência de uma maternidade atípica sem suporte em uma missão de atuar positivamente na vida de outras pessoas.
Selma Sueli Silva é criadora de conteúdo e empreendedora no projeto multimídia Mundo Autista D&I, escritora e radialista. Especialista em Comunicação e Gestão Empresarial (IEC/MG), ela atua como editora no site O Mundo Autista (Portal UAI) e é articulista na Revista Autismo (Canal Autismo). Em 2019, recebeu o prêmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+. Prêmio Microinfluenciadores Digitais 2022, na categoria PcD. É membro da UNESCOSOST movimento de sustentabilidade Criativa, desde 2022.
Imagem: Minha Vida de Trás para Frente, Selma Sueli Silva, ed.Manduruvá, 2017 Adquira em Amazon.com
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