Selma Sueli Silva e Myriam Letícia
Mesmo com todo o avanço em estudos na neurociência, o diagnóstico de autismo em mulheres ainda é baixo e subnotificado. Em muitos casos, a condição e preparação da mulher para a vida social, acaba favorecendo esse quadro.
Selma Sueli Silva: Hoje, vou conversar com alguém especial que eu conheci através do trabalho aqui no Mundo Autista.
Miriam Letícia: Verdade, nos conhecemos de forma bem pitoresca. Eu acompanhava o canal do Mundo Autista em 2016. Eu sou psicóloga e terapeuta integrativa e acompanhava o canal há algum tempo. Como eu desconfiava da minha própria condição de autista, eu comecei a estudar a respeito, mas ficava um pouco receosa. Isso aconteceu bem na época em que a Selma descobriu a sua condição neurodiversa. Em 2017, logo após esse diagnóstico, a Selma lançou o livro “Minha Vida de Trás pra Frente” e eu fui ao evento. Foi quando eu conheci o Victor e ela, me apresentei e, falei com ela que a história dela me deu um gás para ir atrás de descobrir a minha própria condição.
Eu vinha de um histórico de depressão, de transtorno de ansiedade de muitos anos e não conseguia entender o que acontecia comigo. Havia as inabilidades sociais e eu resolvi insistir, ir atrás e assim, eu confirmei a minha condição, também, de autista.
Selma Sueli Silva: Muita gente, antes de a gente buscar o diagnóstico, diz: “Ah, bobagem, para quê?”. E, depois que a gente tem o diagnóstico, dizem: “Bobagem não há razão para você se expor”. Uma das minhas maiores vitórias foi, depois do meu diagnóstico, eu perceber a diferença que teve na minha vida. Mesmo com muitos profissionais questionarem o fato de eu adulto já ter chegado até ali e, por isso, o diagnóstico é descartável. A pessoa não autista não vai entender mesmo, pois só o autista adulto sabe o preço que pagou para chegar até ali, muitas vezes, sem entender porque tudo era tão pesado para ele. Por causa disso mesmo, não podemos desistir de nos conhecermos, de saber quem somos. A Miriam tinha essa desconfiança e foi atrás. Vamos contar para o pessoal, Miriam: como era antes e como que é o depois e o porquê dessa busca, o que mudou? Antes era melhor?
Miriam Letícia: Falo isso não só como mulher autista, mas como psicóloga, também. O diagnóstico, na vida adulta, não é só para rotular a pessoa. Na verdade, diagnóstico nenhum seria para rotular ninguém. O diagnóstico é o indicador de um caminho a ser seguido, um caminho a ser caminhado, onde você vai colocar a sua força e a sua energia para melhorar nas coisa em que você tem mais dificuldade. O diagnóstico tem que servir para isso, se for para rotular, realmente, é melhor não ter diagnóstico.
Selma Sueli Silva: Até porque, rotulado a gente já foi durante toda a vida, em várias situações.
Miriam Letícia: A diferença do antes e do depois foi justamente esse indicador de um caminho por onde eu iria trilhar. Por onde eu iria melhorar, por onde eu iria aceitar, por onde eu queria assumir e passar. São coisas que eu quero assumir, coisas que quero aceitar, coisas que eu quero melhorar e coisas que eu quero adaptar. Tudo o que o diagnóstico me indicou, o que aconteceria comigo, a partir daí, foi o caminho traçado para que eu pudesse viver com mais qualidade de vida. Foi com o diagnóstico que eu percebi o que acontecia, e melhorar através da terapia.
Selma Sueli Silva: Pois é, aí está a questão: qualidade de vida. Porque, quando somos adultos, a nossa personalidade está formada. Quando a gente é mulher, o homem também faz isso, mas, quando a gente é mulher acaba sendo de uma forma mais intensa porque a gente é mais cobrada no aspecto social. Então, a gente busca muitas estratégias e disfarça várias coisas, que, para os que estão à nossa volta, não faz nenhuma diferença. Mas, para nós, esse esforço causa profunda exaustão. É como se a gente representasse um papel. |Não que sejamos falsas, mas para a gente conseguir estar na sociedade como ela é, de uma maneira geral, há muitas exigências como se a gente precisasse de vestir uma roupa do ‘ser social’, que é diferente de ser eu mesma. Miriam, o que você pode pontuar de mais relevante na sua qualidade de vida com o diagnóstico?
Miriam Letícia: Eu tinha muito histórico de depressão e transtorno de ansiedade, por causa das dificuldades de socialização, de linguagem e de comunicação, dentre outras coisas relacionadas ao autismo. Com o diagnóstico, em primeiro lugar, eu me aceitei, da forma que eu era, e também aceitei trilhar um caminho para melhorar algumas coisas que eu queria melhorar. E isso acontece de forma diferente com cada um. Hoje eu quase não tenho algumas dificuldades de socialização. Eu sempre fui muito quieta, não era de sair, não era de interagir muito. Não porque eu não gostasse, pelo contrário, eu adoro gente, adoro socializar, mas eu não sabia como, essa era a questão. Eu tinha dificuldade. Eu queria fazer, mas eu tinha dificuldades. Hoje, eu faço terapia com psicodrama*, o que é maravilhoso, muito legal. A gente trabalha a espontaneidade, isso é muito importante, além da aceitação.
Selma Sueli Silva: Tem autista que gosta de festa, mas, por questões sensoriais e por traquejo social, ele não dá conta de interagir em festas. Aí, vem o rótulo “Ah, ele gosta mais de ficar na dele.”, mas não. Daí vem a depressão, porque ele não dá conta de fazer o que ele quer, que é sair, interagir. Eu fiz comunicação social, para manejar a comunicação, para ter traquejo social. A Miriam fez psicologia, curso que deu a ela esse entendimento imediato. Se ela tivesse feito um curso de comunicação, ela não teria a percepção do que ela gosta. Eu demorei a ter a percepção do que eu gosto porque eu havia passado por profissionais, mas que não perceberam que isso era um desafio para mim. Hoje eu ainda tenho muita vontade de ir a festas, mas não dou conta, o tanto que gostaria de dar.
Miriam Letícia: Acho que é a questão de conhecer nossos limites, isso também é aceitação, é autoconhecimento. Mesmo que a gente goste de alguma coisa, mas a gente sabe que não dá conta, esse é o nosso limite. É algo individual, não existe regra para como deve ser o caminho do autista, porque cada um é cada um. Cada um é único. Primeiro, a gente precisa se conhecer e o profissional que trabalha com o autista deve conhecer a pessoa que ele é e não somente o autismo. Não se trata de uma regra, de uma receita.
Selma Sueli Silva: Conversando com a Miriam, podemos perceber que o subdiagnóstico em mulheres, em homens também, mas em menor proporção, causam danos terríveis, porque trazem danos para a mulher que é lançada a vários outros diagnósticos que a rotulam e não necessariamente espelham o que ela é.
Miriam Letícia: É muito importante falar sobre o autismo no feminino porque é um tema muito desconhecido ainda, é pouco estudado, pouco referenciado.
Selma Sueli Silva: Uma coisa interessante que eu aprendi, conversando com você Miriam e com várias outras mulheres, é que se as mulheres se reconheceram na minha história, vale a pena buscar respostas. Porque embora sejamos diferentes, a gente sabe onde “aperta o calo” do outro. O sofrimento é solitário. Um dos meus presentes em 2017, foi encontrar você, porque eu ainda ia completar um ano de diagnóstico e me senti validada por você.
E profissionalmente? Eu sei que você é servidora pública, sei que é psicóloga e terapeuta holística. Como fica a questão da mulher profissional?
Miriam Letícia: Eu tracei um projeto, desde que me formei, em 2008. Passei por várias experiências na psicologia: trabalhei com educação, trabalhei com políticas públicas, trabalhei com saúde mental. Resolvi estudar sobre saúde mental e me deparei com a questão do autismo em 2015. Eu tinha dificuldades até em me aceitar como psicóloga, devido ao meu histórico de depressão e ansiedade, o que me dava aquela insegurança. O diagnóstico trouxe uma consciência para mim, de quem eu sou de como eu posso contribuir para as pessoas.
Em paralelo, eu comecei a adentrar nas terapias integrativas complementares ou terapias holísticas. Eu comecei a tratar a depressão e ansiedade, por meios como a meditação, a Yoga, o Reiki, para obter mais qualidade de vida. Os medicamentos prescritos, tomados por muitos anos, fizeram muito mal para mim, embora seja importante e eu ainda precise. Mas essa outra vertente são práticas integrativas de saúde, são complementares. Eu gostei tanto, que fui me especializar na área, me capacitei como terapeuta integrativa ou holística. Ambas são práticas diferentes da psicologia. Como psicóloga, eu acabei uma especialização no Transtorno do Espectro Autista (TEA). Como terapeuta holística, eu faço atendimentos online, na pandemia. São duas práticas paralelas que eu tenho, além de ser servidora pública, pois trabalho como Recursos Humanos, na Câmara Municipal. O diagnóstico foi muito bom também para que eu direcionasse o caminho profissional, vendo por onde eu queria trilhar e ajudar as pessoas.
**Psicodrama: uma psicoterapia em grupo em que a representação dramática improvisada é usada como núcleo de abordagem e exploração da psique humana e seus vínculos emocionais, visando à catarse e ao desenvolvimento da espontaneidade do indivíduo.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.