Autismo, Inclusão no Ensino Superior e Educação Soka se interseccionam na história de criação do meu livro Neurodivergentes: autismo na contemporaneidade (2019, link na Amazon). Essa obra jornalístico-acadêmica foi um divisor de águas na minha carreira. Afinal, marcou a transição da autora dos juvenis Outro Olhar (2015) e Danielle, asperger (2016) para uma escritora madura.
Além disso, Neurodivergentes é ainda hoje a minha obra mais citada. O livro-reportagem conta com oito referências em pesquisas científicas, conforme o Google Acadêmico.
Tudo isso começou quando conheci o professor doutor Maurício Guilherme Silva Júnior (o Maurice) no primeiro semestre de 2017. Isso aconteceu durante a disciplina de “Edição Jornalística” que ele ministrava. Essas aulas eram realizadas em laboratório. Isso facilitava o contato direto com o educador. Na época, eu estava com a agenda de palestras e aparições em produtos midiáticos bastante sobrecarregada. Por isso, pedi para fazer individualmente a reportagem solicitada na disciplina. Então, separei-me, por um momento, do grupo com o qual geralmente trabalhava.
À época, minha mãe também havia recebido o diagnóstico de autismo, já adulta. Este foi um dos motivos que me levou a destinar o hiperfoco aos estudos sobre autismo no feminino. Portanto, sugeri que a reportagem que tinha de desenvolver tivesse esse tema. O professor ficou muito surpreso. E impressionado com a minha capacidade de aprofundar em nuances do assunto. Isso chegou ao ponto de ele me dar duas páginas do jornal da universidade. Com isso, publicou o texto em edição anterior ao previsto. Assim, em junho de 2017, era lançada a reportagem “Elas e o Autismo”, no jornal-laboratório do UniBH, o Impressão.
Enquanto estive nessa instituição de ensino, tive um Plano de Desenvolvimento Individualizado (PDI), como previsto pela Lei Brasileira de Inclusão no parágrafo VII, artigo 28. Aliás, a experiência com o Maurice me fez compreender bem o que diz o artigo 27 da mesma lei. Lá, consta: “A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem “(BRASIL, 2015).
Segundo Pessoa, Mantovani e Costa (2019), as noções do senso comum, no que se refere ao imaginário sobre as pessoas com deficiência, apontam para uma expectativa social baixa. Dessa forma, sempre percebi que havia a tendência social de apontar as pessoas autistas a um lugar aquém das outras. Porém, a experiência mostrava que, apesar das grandes dificuldades para questões até mesmo básicas da vida diária, havia, também, potencialidades. Ou seja,o cérebro neurodivergente poderia apresentar características profissionais que não são tão facilmente encontradas nas pessoas típicas.
Sobre tal questão, Del Monde (2019), em entrevista ao livro Neurodivergentes, aponta que certas “características do cérebro autista, especialmente a busca por padrões, a sistematização, o hiperfoco, o apego aos detalhes e a memória privilegiada têm grande impacto nas manifestações desse complexo conjunto de funções que conceituamos como ‘inteligência’.
Um dos aspectos que se mostraram de extrema importância nessa construção foi a “teoria de criação de valores”, corrente que tem, como base, a Educação Soka (MAKIGUCHI, 1930). Aliás, foi Daisaku Ikeda quem refinou tal perspectiva de educação, por meio de uma visão de mundo da resistência dialógica, que responde às limitações da percepção neoliberal da educação (GOULAH, 2010).
Para o sistema educacional Soka, a educação é um processo de integração em que os alunos adquirem uma consciência da interdependência de si mesmos, dos outros e do meio ambiente. Dessa forma, os estímulos pela academia de sabedoria, coragem e compaixão não surgem de maneira espontânea. Na verdade, eles se despertam em meio às pessoas. Isso ocorre à medida em que que elas aprendem a importância de servir aos outros, ao mundo natural ao seu redor, e para a grande causa da paz e da liberdade.
O educador e pesquisador Tsunessaburo Makigutchi, que criou o sistema, observa que: “Não é a mercantilização da informação fragmentada, ou a simples aquisição dos métodos de aprendizagem por conta própria. Em vez de incentivar os alunos a apropriarem-se dos tesouros intelectuais descobertos pelos outros, devemos capacitá-los a realizar por conta própria o processo de descoberta e da invenção”. Ele se baseia em três pilares:
Dessa forma, o ponto principal em Soka Kyoikugaku Taikei de Makiguchi é a Teoria de Valor. Em seu conceito, ele adaptou e reorganizou o sistema de valor neokantiano de verdade, bondade e beleza dominantes no Japão da época – para belo, benefício (também traduzido como ganho ou utilidade) e bem. Assim, definiu o belo como aquilo que traz satisfação à sensibilidade estética do indivíduo; o benefício como aquilo que desenvolve a vida individual de maneira holística, e o bem como aquilo que contribui para o bem estar da sociedade humana como um todo.
Makiguchi, com isso, defendia que os alunos deveriam ser felizes enquanto estudavam. Essa perspectiva surge em meio ao Japão militarista dos anos 1930. Segundo a doutora RIta Voss (2014), a felicidade destacada por Makiguchi não se centra em algo abstrato. Mas, no cultivo e no aprimoramento das qualidades subjetivas que levam as pessoas a desenvolver satisfação e plenitude no momento presente. Assim, de acordo com Sakaraji (2014), o propósito da Educação Soka é desenvolver o senso crítico, a consciência e a transformação pessoal dos alunos, de forma a que possam desenvolver, ao máximo, o próprio potencial.
Em conformidade com esta perspectiva de Educação que visa a projetos que revolucionem internamente os alunos valorizando suas características singulares, há a peculiar história do livro Neurodivergentes. Este foi o meu Trabalho de Conclusão de Curso. Cheguei ao Maurice com o argumento de que gostaria de aproveitar o hiperfoco de pesquisa de forma mais intensa na faculdade. Afinal, se houvesse a intenção, ou o desejo, de desenvolver aquele cérebro neuroatípico à maneira dos cérebros típicos, possivelmente, não se despertariam os meus potenciais máximos. Essa observação, aliás, está em consonância com o artigo da LBI.
Diante de tal cenário, Maurice propôs, em reunião com o então coordenador do curso de Jornalismo, João Carvalho, que o TCC pudesse se transformar em um livro jornalístico-acadêmico, com pesquisa mais aprofundada e ensaística. Isso em comparação aos tradicionais artigos e monografias obrigatórias à conclusão do bacharelado.
Então, para respeitar e valorizar as minhas características subjetivas, Maurice focou em elaborar métodos em que eu tinha claro qual o próximo passo a seguir e qual deveria ser realizado naquele momento. Assim, primeiro foi delineado um projeto de três capítulos e depois definida a ordem e a maneira como eles seriam escritos. Esta estratégia tanto eliminou os impactos das disfunções executivas no que tange a planejamento e organização quanto potencializou a capacidade de foco.
Na Educação Soka, há ainda um diálogo com os estudos da “andragogia”. Este modelo teve concepção por Knowles em 1980 para facilitar a aprendizagem de adultos. Mas o objetivo, aqui, não é pensar em dicotomia entre a pedagogia e andragogia. E sim, debruçar sobre a noção de aprendizagem para adultos, com vistas à felicidade conceituada por Makiguchi e ao senso crítico proposto por ele.
Os cinco pressupostos centrais de Knowles, em sua primeira visita ao tema, são:
Dessa forma, o estudo de questões relacionadas ao próprio ativismo da aluna e o resultado de um produto com aplicabilidade para estudos sobre o TEA geraram o livro-reportagem Neurodivergentes, durante o Simpósio Internacional sobre Educação Inclusiva, promovido pelo Mundo Autista. Tudo isso me rendeu a sensação de legitimação profissional e bem estar.
Sophia Mendonça é jornalista e escritora. Também, atua como youtuber do canal “Mundo Autista” e é colunista da “Revista Autismo/Canal Autismo“ e do “Portal UAI“. Além disso, é mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades (UFMG) e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução (UfPel). Assim, em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Já em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.
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