Selma Sueli Silva
Falar sobre nossas emoções não é tarefa fácil. Mesmo porque, às vezes, nós mesmos não entendemos o que estamos sentindo. Mas nos últimos anos uma coisa ficou clara para mim: capacitismo existe, é fato e está arraigado em nossas vísceras.
Há muito alguma coisa me incomoda, eu sinto, não consigo nominar, não consigo compartilhar, mas eu sofro.
Há 12 anos recebi o diagnóstico de meu filho e, a partir daí, me vi empurrada para uma maratona em que nem sequer sabia aonde iria chegar.
Era um tal de faz (dá-lhe dinheiro), compre (dá-lhe dinheiro), terapia (dá-lhe dinheiro), remédios (dá-lhe dinheiro). Mas o mais doído era a sensação de que, mesmo escalpelada, você ainda estava em dívida com psiquiatras, psicólogos, educadores, familiares, amigos.
Afinal, há que se ter gratidão por quem trata do seu filho, por quem dopa o seu filho, por quem atura o seu filho, por quem ensina o seu filho, por quem convive com seu filho.
E, no meio desse processo, se você ousa emergir para buscar um pouco de ar, eles afundam de novo sua cabeça. Porque eles sabem, ou pensam que sabem, que no fundo é o seu lugar. Que é assim mesmo, sufocante. Mas que você vai conseguir porque eles, a despeito das altas cifras, conhecem, sabem, estudaram.
Até um dia em que seu filho cresce e, sedento de avisar que nem tudo é o que parece ser e que muitos deles estão enganados, não percebe que você não era um deles e lhe lança lá, naquela fila de pessoas que buscam entender, mas se recusam a conhecer.
Até um dia em que você mesma recebe seu diagnóstico. E isso explica muita coisa porque você, como seu filho, quis avisar àquela gente que não era bem assim.
Nessa hora, você volta a se lembrar do incômodo sentimento de quanto você se rebelava contra quem detinha o conhecimento para ajudar seu filho. Como se exercer uma profissão e ganhar dinheiro com ela fosse somente ajuda!
E um dia, com a ingenuidade de quem redescobre a roda, você compartilha o que tem de mais puro em você, o que você traz desde a sua infância. Porque eles precisam saber, seu filho já havia dito, mas não foi ouvido. E nesse dia, com data, hora e local marcados, você escolhe a pessoa que parece mais legítima para você compartilhar. E ele solicita a presença do seu filho. Você considera natural, já que há muito ele conhece toda a família.
Como uma garota feliz por ter, finalmente, encontrado um amigo, você despeja os seus diários, tesouros guardados desde quando você começou a escrever aos dez anos de idade. Talvez, se não fosse o seu cérebro neurodivergente, você tivesse percebido algo diferente na primeira pessoa que o mundo do autismo lhe apresentou: certa inquietação, um olhar indecifrável, talvez. Mas você está feliz demais diante do amigo e dispara a falar como fazia antes de ter treinado a fazer voltar a profusão de palavras goela abaixo
.Você chega a ter desejo de bater palmas e dar gritinhos de felicidade. Olha para o lado e percebe o olhar do filho, que, agora, já consegue entender. É quando seu cérebro se dá conta de que as palavras vindas do “amigo” não combinam com o que você está sentindo. Você balança a cabeça, faz algumas perguntas para tentar se situar. As respostas são como flechas que atingem seu coração e trazem à tona sentimentos que você demorou anos para abafar. A sensação do ridículo, diante do tesouro das suas palavras espalhadas na mesa, traz a constatação: não era um amigo. De novo, você se expôs. Levou anos para aprender a não fazê-lo, mas caiu na armadilha mais uma vez.
Uma vergonha gigante lhe envolve da cabeça aos pés, agravada por ter seu filho ali, testemunha de toda a sua vulnerabilidade. Você continua confusa e o algoz piora tudo num vai e volta de palavras e de afirmativas que fazem sua cabeça latejar, e você, involuntariamente, aperta a cabeça na tentativa de fazer aquela confusão passar. O quadro piora quando você se dá conta de que seu filho está ao seu lado, tendo ele mesmo a sua própria crise.
Neste momento, a mãe tenta, desesperadamente, retomar o equilíbrio para proteger a sua cria. Tarde demais. A menina de sua infância, a adolescente de seus pesadelos e a mulher com sua armadura já estavam completamente fora de controle porque, mais uma vez, elas confiaram e perceberam que essa tal amizade parece não ter sido feita para as pessoas diferentes.
Agora, alguns anos depois, eu ainda me assusto ao olhar para trás e perceber a dimensão do estrago que a falta de empatia pode causar no ser humano. Ainda assim, mais uma vez, respiro e sigo em frente, pois foram lindas e honrosas exceções de seres humanos que, mais uma vez, me resgataram e me dão esperanças de compreender que não estou só. Eu e meu filho, na construção de um mundo mais respeitoso, mais empático e mais humano. E nós, as exceções, sabemos que não há que se ter “gratidão eterna”, daquele tipo de dever favores, tão ao gosto do capacitismo. Porque o que fazemos é simplesmente viver para ser feliz e fazer o outro feliz. Isso é prezar o outro. Não vamos deixar ninguém para trás.
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