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Autismo, atividades de vida diária e o rótulo de preguiçosos

Victor Mendonça e Selma Sueli Silva

Selma: Eu e o Victor viemos de uma turnê muito bacana de vários eventos e em um deles uma mãe, a Isabel de Contagem, comentou que queria que o filho trocasse a calça que ele estava usando por uma bermuda, pois lá estava fazendo calor. Falou com o filho “Não está legal, tá calor, coloque uma bermuda”. O filho sempre voltou com a calça. Na terceira vez que o filho voltou com calça, ela perguntou: “O que isso?” e ele respondeu “Não é bermuda?”. Ficou. “Mas, gente, embora eu pensasse que ele soubesse o que era uma calça e uma bermuda, isso tinha sido ensinado para ele?”. Não.

Victor: O neurotípico aprende por intuição, mas percebemos que no autismo é outro universo e outra maneira de aprender. Eu me identifiquei muito com isso, porque às vezes, quando eu vou procurar as coisas, as pessoas dizem: “Está muito fácil, no armário.” Ai eu cismei que é um armário só da cozinha, mas há vários armários e eu vou procurar só em um. Então pensam: “Que menino preguiçoso, não achou o negócio que ele falou que estava no armário, não procurou direito, não olhou em outros armários”. Mas, para mim, armário da cozinha era aquele, era um só. Mesma coisa com a cor: “Procura naquele lugar vermelho”. Mas se tiver mais de uma bolsinha vermelha, lascou.

Selma: E se tiver outra coisa vermelha, fica só a palavra vermelho, digamos, ele pode ir de encontro à outra coisa. Aí você reage: “Eu falei bolsinha e ele trouxe caixinha”.

Victor: Eu me lembro, eu já até contei no canal há uns dois anos, mas vou contar de novo, pois quem não viu fica sabendo. O dia em que minha mãe me fez pagar uns três micos diferentes, seguidamente, no mesmo dia. Em um deles, a gente ia a uma reunião budista no bairro Buritis, em Belo Horizonte, e ela falou: “A reunião vai ser em cima da padaria”. A indicação estava meio confusa mesmo, mas minha mãe falou que era literalmente em cima da padaria no andar que não tinha nada.

Selma: E o porteiro falou que no andar não havia nada, mas eu só acreditei quando fui e olhei.

Victor: Na verdade, era em um prédio que ficava lá perto.

Selma: O que mais? Foram três micos.

Victor: Os outros são muito constrangedores. Mas vou falar mesmo assim. O primeiro mico foi que estávamos no shopping, no bairro Buritis. A minha mãe viu roupa lá e falou: “Que absurdo o preço”. A vendedora estava do lado e arregalou os olhos para ela, respondendo: “Está na promoção”.

Selma: Eu lembro direitinho. Eu fui atraída porque eu vi R$ 69,90 e para aquele conjunto estava um preço bacana de promoção, mas quando eu cheguei lá estava escrito “5 x de 69,90”.

Victor: Cinco vezes!

Selma: Eu posso estar exagerando, acho que eram três.

Victor: Mas mesmo assim, eu quero dizer, estava bem pequenininho…

Selma: Mas antes de ele contar o terceiro, eu vou falar uma coisa que acontece muitas vezes comigo e que eu tenho, na minha vida adulta, muita vergonha disso porque na minha vida de adolescente e jovem eu não reconhecia as pessoas dependendo dos lugares e aí todo mundo me achava metida e me chamava de metida e eu creditava isso ao fato de ser míope. Porém, depois que eu fiz a cirurgia de miopia, isso continuou acontecendo. Eu fui dar uma palestra ontem, e tem uma amiga budista que também estava no local, pois ela é professora de alunos que foram à palestra. Eu olhei para ela e pensei: “Eu acho que é”, mas tive que olhar o crachá, porque temos dificuldade de reconhecer a pessoa se ela não estiver no contexto de onde a gente a conhece.

Victor: Muitos autistas leves têm essa condição mesmo. E o terceiro mico, que para mim foi o mais engraçado… Hoje eu acho engraçado, mas na hora eu pedi para morrer. Na época eu estava fazendo faculdade, encontrei com a minha amiga da faculdade, a querida Patrícia Luz, um abraço para ela. A minha mãe tinha visto a Patrícia em uma festa uma vez, e então ela abraçou minha mãe e ela achou que fosse alguém da reunião. Tentou despistar, mas falou: “Ah… Não sei quem é você”.

Selma: Ela me perguntou: “Você me reconheceu?”. Aí, quando eu vi que não, respondi: “Reconheci nada, não sei quem é você”.

Victor: Que vergonha, Patrícia. Desculpa!

Selma: Eu já tinha passado pelo perrengue da roupa, que achei que custava R$ 70 e na verdade eram R$ 210. Já tinha passado pelo outro perrengue de ver a reunião em cima da padaria, e era acima da padaria. Eu já estava toda desorientada, encontrei essa menina e pensei: “Estou salva, encontrei alguém da reunião”. E era a colega do Victor. Essa dificuldade, o que os outros aprendem de maneira intuitiva e observando, não é igual para o autista.

Victor: Tem que ser explicadinho nos mínimos detalhes.

Selma: Passo a passo.

Victor: Você não sabe lavar vasilha, por exemplo, pois envolve um passo a passo danado.

Selma: Pega a bucha, traz a bucha, coloca detergente, guarda o detergente, coloca a bucha na outra mão se você for destro, pega a vasilha, lava os copos primeiros. Você vai das menos gordurosas para as mais gordurosas.

Victor: Isso parece uma coisa simples que você até falou em tom de ironia, mas não foi não. Para o autista é muita informação, uma depois da outra.

Mundo Autista

Ver Comentários

  • Boa noite! Estava procurando artigos sobre o autismo, porque minha filha foi diagnosticada com TEA , não faz nem 1 ano.
    Me deparei com vocês contando que participaram de uma reunião budista, o qual eu também participo! Quanta coincidência

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